A política de alfabetização do governo Bolsonaro e sua lógica colonial-imperialista
Publicado 20/01/2020 - Atualizado 20/01/2020
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, marcado por um processo de exclusão social e econômica que se agrava pelos problemas gigantes na área da educação, como se evidencia nos índices do IBGE relativos à alfabetização. Apesar dos avanços ao longo do século XX e nestas duas décadas do século XXI, ainda temos em torno de 14 milhões de jovens e adultos analfabetos e somos 38% dos analfabetos de toda a América Latina, segundo dados da Unesco. Como podemos avançar no combate ao analfabetismo se o Governo que ora ocupa o Planalto decidiu ignorar o conhecimento científico acumulado por décadas nos centros de pesquisa de todas as universidades do país? É isto que revela toda sorte de materiais que concretizam a política de alfabetização já divulgados pelo Ministério da Educação. Começando pelo decreto n 9.765, de 11 de abril de 2019, que Institui a Política Nacional de Alfabetização, do qual já tratamos antes (https://observatoriodademocracia.org.br/2019/12/13/%ef%bb%bfpor-uma-alfabetizacao-transformadora/), o que vimos é uma política rudimentar que ensaia a volta a uma concepção de alfabetização do início do século XX, completamente ultrapassada, baseada numa visão de aprendizagem mecanicista de fonemas e letras por meio dos chamados métodos sintéticos, cujo expoente máximo é o método fônico que o MEC está implementando.
De onde surgem as ideias que fundamentam essa política se não resultam das pesquisas realizadas no país e internacionalmente reconhecidas? Trata-se de um arremedo de imitação das políticas de alfabetização dos Estados Unidos, do Reino Unido e outros países do Norte, importadas com o argumento da alfabetização com base em “evidências”, de cunho positivista. Sob o comando de Weintraub, o MEC sucumbe à lógica imperialista e colonialista, arrancando as pedras já sedimentadas no solo das práticas de alfabetização nas escolas brasileiras, tão amplamente estudadas ao longo de décadas, com o dinheiro público investido na pós-graduação. Nos coloca em posição de extrema subserviência e fragilidade enquanto nação. A decisão de importar políticas, no entanto, exclui aquilo que há de mais efetivo e interessante nas políticas educacionais dos países ricos: o investimento do poder público no acesso à cultura escrita, materializado nas bibliotecas escolares e bibliotecas de bairro, que contribuem, de forma decisiva, para a alfabetização das crianças. O investimento na carreira docente, com salários mais dignos. O investimento nas condições materiais da escola, devidamente equipadas. O investimento na educação de tempo integral. Entretanto, o MEC, imitando o caranguejo, decide de forma autoritária e terraplanista, dar mil passos atrás, interrompendo um ciclo de avanços em políticas educacionais que, se não representavam o ideal, vinham focando na importância da cultura escrita para combater o fracasso da alfabetização, como por exemplo o PNBE (Programa Nacional de Biblioteca Escolar) e o PNAIC (Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa) que disponibilizaram, na última década, milhares de livros literários às escolas.
Não bastasse o Decreto, o MEC lançou o desastrado programa “Leia pra mim”, que não alcança a profundidade de um pires, não resiste à análise mais superficial. Uma cartilha destinada aos pais com um conjunto de recomendações que parecem ter saído de outro planeta. Sim, porque os pais ali representados não existem no Brasil, nem na América Latina, nem em país nenhum da periferia capitalista. Eis alguns dos conselhos e lições de moral: “trate seu filho com amor e carinho; tenha altas expectativas em relação ao seu filho; dê livros de presente para seu filho; leia e escreva diante de seu filho; leia em voz alta para seu filho; elogie e encoraje seu filho” etc. Sem nenhum esforço se percebe o quanto o Estado é retirado da sua função de garantidor do direito à educação, portanto, de acesso à cultura escrita, transferindo a responsabilidade para a família. Uma família idealizada, que teria disponível muitas horas para dedicar-se à leitura para os seus filhos. Uma família que em nada se assemelha às diferentes configurações da família brasileira; que não trabalha duro; que não precisa acordar às 4 da manhã para pegar transporte público lotado; uma família que não gasta 4 horas por dia com deslocamento para o trabalho, se mora nos grandes centros; uma família, minha gente, que não sabe o que é sobreviver com um salário mínimo; uma família que não engrossa as estatísticas de 13 milhões de desempregados; uma família que nem de longe sabe o que é viver no campo, abandonada à própria sorte; uma família cujos filhos frequentam a escola pois não são os jovens negros assassinados pelo Estado; uma família cujo pai não se encontra entre os 800.000 detentos do sistema prisional brasileiro; uma família que não vem perdendo a esperança em dias melhores, porque já os tem; É essa família ideal que precisa, de acordo com o MEC, investir na educação de seus filhos, lendo horas e horas por dia livros de literatura e contando histórias.
É contra essa lógica colonial-imperialista que nós, educadores e pesquisadores brasileiros, precisamos lutar. Não é mais suficiente apenas sermos professores, pesquisadores, e produzirmos o melhor e mais avançado conhecimento científico em educação publicando-o nas melhores revistas. Não. Urge assumirmos uma atitude política verdadeiramente revolucionária, usar da ferramenta poderosa que é a escrita e denunciarmos, aos quatro cantos, o que vem ocorrendo no Brasil. O desmonte que a lógica colonial e imperialista vem realizando em todas as áreas, especialmente na educação e na cultura, precisa ser enfrentado com atitudes que rompam com a acomodação que nos paralisou e produziu o governo que aí está. Precisamos mostrar, de fato, que nossa prática educativa é realmente revolucionária. Precisamos nos organizar politicamente.
Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo é doutora em Educação Professora da Universidade Federal de São João del-Rei, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Letramento e Pós-colonialidade Pesquisadora do CNPq