A privatização do setor público de saúde

Sugerir que os problemas da saúde pública surgem em decorrência da gestão, apontando tão somente para a inovação no modo de gestão como solução, revela uma tendência em justificar sua “ineficiência” em virtude de dificuldades meramente gestacionais ao tempo em que ignora a decisão política de inviabilizar a saúde pública gerida e operacionalizada pelo Estado.

Nas décadas de 1970 e 1980, os sanitaristas explicitaram suas concepções teóricas acerca de um novo modelo de atenção em saúde para substituir o modelo médico-assistencial privatista. Destacaram as contradições internas do modelo em vigor e propuseram as premissas da universalidade, igualdade, integralidade, equidade, descentralização e participação popular para compor um novo modelo.

Assim, na década de 80 a necessidade de uma teoria de transição apareceu como fruto do movimento dos sanitaristas para a construção desse novo modelo que relevou e considerou também os interesses específicos da sociedade. Entretanto, desde o início, a controvérsia sobre o ‘novo modelo’ foi um assunto confuso em virtude da desarmonia entre os interesses do projeto liberal hegemônico em vigor e o Estado, responsável pela viabilização da reforma abrangente proposta pelos sanitaristas.

A intenção de equidade, universalidade, integralidade e participação popular fica desprovida das mais elementares garantias materiais para a transformação do modelo de atenção à saúde, onde prevalece a dinâmica liberal. Nem a intenção abertamente anunciada de alguns sanitaristas que compuseram os quadros do governo a época produziu uma mudança fundamental nas estruturas que alojavam essa dinâmica. Enquanto esta proposta de reforma ampliou as possibilidades de crítica ao modelo médico-assistencial privatista, a adoção de medidas de acordo com as estratégias de esvaziamento do espaço público e da expansão do mercado na área, conduziu, e segue conduzindo cada vez mais, para a privatização com a consequente diminuição da regulação da atenção em saúde pelo Estado.

Ligia Bahia e Maria Jose Luzuriaga, ao longo dos últimos anos, têm contribuído para o melhor entendimento das consequências da política liberal para o setor de saúde na América Latina. De acordo com elas, a concepção liberal do Estado só pode ser entendida em oposição ao Estado de bem-estar. Observam que as políticas liberais impõem mecanismos de mercado às políticas sociais e apresentam algumas estratégias idealizadas pelos governos protagonistas para reduzir a ação estatal e promover a privatização do financiamento e da produção dos serviços, o corte dos gastos sociais e a adoção de uma administração nos moldes empresariais.

Assim, os serviços de saúde menos onerosos ao Estado liberal são destinados aos setores mais pobres da nação, e os serviços de saúde mais caros e com mais alta tecnologia aos mais abastados, que podem pagar por eles. O que de fato ocorre é que o Estado, ao se desobrigar de parte do financiamento e ao estabelecer a amplitude do fornecimento de serviços de saúde à nação, circunscreve a sua abrangência social de atendimento, tanto do ponto de vista da classe social eleita, quanto dos serviços a ela destinados. Além disso, ocorre a crescente ocupação pelos setores privados dos vários níveis de atenção à saúde que até recentemente eram de exclusividade do serviço público. Tudo isso prenuncia contradições e conflitos, estando entre estes a luta pelo acesso dos mais pobres à saúde e sua demanda pela igualdade. Dadas, portanto, as condições estabelecidas de desigualdade pela política liberal, é possível afirmar que ela é conflitante com os princípios de solidariedade, universalização, coletivismo e desmercantilização. Em síntese, o projeto liberal impõe a acumulação do capital, e a privatização é um dos elementos desta estratégia, submetendo as políticas sociais de Estado à dinâmicada rentabilidade, com interesse peculiar e mais pernicioso nas relacionadas à saúde e educação.

O fato é que o mercado, com o objetivo de expandir e acumular, precisa disciplinar a burocracia estatal para seus interesses. O Estado, para assegurar tal objetivo, privatiza empresas estatais, adota modelos de descentralização administrativa desresponsabilizando-se das suas funções sociais fundamentais e desregulamenta as relações de trabalho, objetivando baixar custos da força de trabalho. Nesse mesmo espírito, o gestor público se encarrega de organizar o sistema político que estrutura as condições gerais para a expansão do mercado.

E isto nos faz retornar a privatização a partir do Projeto de Lei 1749/2011, que criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A. – EBSERH pelo Estado brasileiro. Os gestores apresentavam a privatização como processo necessário para a solução da “ineficiência” dos serviços públicos de assistência médico-hospitalar e ambulatorial executados pelos hospitais das universidades públicas federais. Segundo eles, haveria um repasse de recursos públicos a EBSERH, e o relacionamento entre a EBSERH e cada universidade seria por meio de um contrato, que especificava as obrigações das partes e as metas de desempenho esperadas da Empresa Pública, com os respectivos indicadores para a avaliação e o controle pela Universidade. Outro bom exemplo que demonstra claramente o incremento da política liberal de privatização da saúde é o que realizou em 2017 o então prefeito de São Paulo João Doria, ao destinar 46,2% do orçamento de saúde do município ao pagamento de instituições privadas contratadas pelo governo para realizar funções típicas do poder público. O setor privado acabou por receber R$ 4,9 bilhões dos R$ 10,6 bilhões gastos pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Nestes dois casos, é possível identificar o papel do gestor público como executor no processo de mercantilização do setor público de saúde.  A justificativa destes agentes públicos para a solução da “ineficiência” do setor está na transferência de fundos financiados pela tributação geral ao setor privado ou na transmissão da propriedade pública regulamentada. Em nenhum momento se cogita as reais causas da ineficiência como o proposital sucateamento dos hospitais públicos, cuja excelência tecnológica e profissional tem sido  negligenciada pela falta de financiamento para o setor, inexistência de políticas de recursos humanos, falta de transparência e controle social das licitações, redução de concursos públicos de modo a coibir o clientelismo, o nepotismo e a corrupção, dentre tantas outras ações que têm o claro objetivo de responder à ânsia liberal.

Por estas razões, sugerir que os problemas da saúde pública surgem em decorrência da gestão, apontando tão somente para a inovação no modo de gestão como solução, revela uma tendência em justificar sua “ineficiência” em virtude de dificuldades meramente gestacionais ao tempo em que ignora a decisão política de inviabilizar a saúde pública gerida e operacionalizada pelo Estado. É verdade que eles esboçaram um aspecto importante, qual seja, o da necessidade de alterar agestão para tornar os serviços públicos de saúde mais eficientes. Entretanto, é necessário sublinhar a impossibilidade de haver um novo tipo de gestão, em razão dela necessariamente estar inserida nas mesmas estruturas e determinações sociais injustas e desiguais e, portanto, responsáveis pelos atuais problemas do setor. Se uma alteração de gestão é necessária, deverá ser acompanhada da reavaliação global do sistema, mas dentro da ótica pública pelas próprias características do serviço social que a saúde impõe. A solução não estará na mercantilização da saúde. Aqui, é necessário referir que a transferência pelo setor público das condições de produção da atenção à saúde para os setores privados torna o controle pelo Estado não apenas difícil, mas em última análise quase impossível de manter-se, em razão do controle da saúde pelo Estado só ocorrer se ele aumentar constantemente sua escala de operação e de a saúde constituir-se não uma mercadoria, mas um direito e um bem social. A julgar pelos resultados obtidos quando da privatização do Hospital das Clínicas de São Paulo na década de 90 é possível compreender o que constatamos. Após três anos de de liberado sucateamento do HC, houve uma privatização crescente dos serviços,especialmente mediante contratos com empresas de medicina de grupo e seguros de saúde. Tais empresas passaram a utilizar instalações e equipamentos públicos, a ocupar vagas e a realizar procedimentos antes destinados à população em geral, criando mecanismos de discriminação contra pacientes do Sistema Único de Saúde, como as filas-duplas (com as do setor privado merecendo prioridade), e a oferta diferenciada de qualidade de serviços. Neste caso, tais procedimentos contrapõem-se aos princípios éticos – e legais – da universalidade e do atendimento equânime.  

Neste novo cenário, as premissas básicas do movimento sanitarista das décadas de 70 e 80 tornam-se irrealizáveis, porque quanto mais bem-sucedidas forem as empresas que substituem o serviço público de saúde, como devem ser para poderem sobreviver, tanto piores serão as perspectivas de satisfação das necessidades dos indivíduos. O problema, a princípio, não está no sucesso dessas empresas, o problema emana das restrições impostas às necessidades dos indivíduos como forma de assegurar sua eficiência econômica. A questão aqui é, portanto: como o setor privado busca sua eficiência econômica? Objetivamente, por meio do estabelecimento da equivalência entre consumo e necessidades humanas. Por conseguinte, poderá haver uma tendência a favor da produção de um consumo que satisfaça os requisitos do setor privado, bloqueando dessa forma o atendimento às reais necessidades humanas. Assegurar, portanto, a administração sustentável na produção da atenção em saúde revela-se como algo impossível para essas empresas, pois elas teriam de renunciar a sua própria natureza.

Sugerir, portanto, que os resultados esperados do empreendimento estatal possam ser tão racionalmente calculados quanto à “previsibilidade racional” dos negócios capitalistas, evita ou ignora a questão do “como” obter eficiência. Ao nosso juízo, o “como” para a obtenção da eficiência pode ser traduzido por meio da reorientação qualitativa e quantitativa das práticas do setor, em direção a uma grande melhoria da competência profissional, material e instrumental, para a qual deve ser canalizado o recurso público a fim de assegurar o direito de todos.

A solução proposta de privatização para a melhoria do problema de acesso equalidade no atendimento em saúde não oferece a menor sombra de evidência para comprovar os argumentos de eficácia e eficiência na atenção à saúde. As alegações de eficácia defendidas se apoiam em práticas de saúde sintonizadas com a expansão do mercado e com a liquidação das possibilidades de acesso universal e integral aos serviços de saúde.

Diante destas considerações, é importante sublinhar a necessidade de se construir uma esfera pública de saúde democrática em oposição à esfera pública privatizada. Para isto, é preciso situar as pessoas que utilizam o sistema de saúde e seus trabalhadores.

Por se tratar de uma estratégia, segundo nossa visão, exercida pelo capital com vistas ao desmantelamento dos serviços sociais públicos, seria notável e desejável que esta questão da saúde, em particular na América Latina, fosse um ponto de interlocução para a preservação da integridade e da soberania desses povos, bem como para a garantia de redução do mercado sobre os serviços sociais fundamentais.

Por fim, é possível constatar que é impossível concretizar políticas públicas com um conteúdo igualitário, universal e que atenda às reais necessidades dos indivíduos quando tais políticas são idealizadas e reguladas por um Estado liberal.

Referências

BAHIA, Ligia. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 34, n. 7, e00067218,    2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00067218. Acesso em: 15 abr 2019.

LUZURIAGA, Maria José; BAHIA, Lígia. Procesos de expansión y límites a la privatización de la atención de lasalud en América Latina: más allá de las tipologías. Cad. Saúde Pública, Riode Janeiro,  v. 33, supl. 2, e00127616,    2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00127616. Acesso em: 13 mar.2019

Arlene Laurenti é enfermeira. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora universitária no curso de Enfermagem do Instituto Luterano Bom Jesus/IELUSC.

German Gregório Monterrosa Ayala é engenheiro. Mestrando do curso de Geografia Humana pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Fonte: El País Brasil