Liberais, pero no mucho: decisões judiciais políticas proíbem greves políticas
Publicado 21/06/2019
Artigo originalmente publicado no Jota
Precisamos com urgência de uma anti-injunction bill como a Norris-La Guardia Act de 1932
Na semana que passou duas decisões bastante espantosas da Justiça do Trabalho, típicas de Estados autoritários, foram divulgadas pela imprensa. Decisões de que não temos paralelo nem mesmo durante o Regime Militar, quando em tantas ocasiões alguns tribunais e juízes trabalhistas se comportaram de forma subserviente para coibir greves e restringir a atividade sindical.
A Folha de São Paulo divulgou que no dia 23 de maio a SDI-1 do TST, por sete votos a cinco, decidiu que bancos podem ajuizar ações preventivas para requerer ao Judiciário uso de força policial ou reforço de segurança privada, com a finalidade de impedir piquetes que causem transtornos a clientes ou empregados que queiram trabalhar.
Ou seja, entendeu aquele órgão fracionário, por apertada maioria, que é função do Poder Judiciário convalidar medidas patronais dissuasórias da greve, mesmo antes de que ela ocorra.
Em outras palavras, o Judiciário pode ser provocado para legitimar as ações antisindicais e intimidatórias da empresa. E as forças policiais, pagas pelo contribuinte, podem ser empregadas para evitar prejuízos econômicos que os bancos sofram com a paralisação dos seus trabalhadores (e não me venham com a tese de que a medida se destina a proteger os cidadãos-consumidores de atividade “essencial”, pois com a internet e os caixas eletrônicos ninguém morre por ficar alguns dias sem visitar uma agência bancária…).
Esse julgamento do TST lembra aquelas decisões da Justiça Federal dos EUA – hoje tidas como bastante vexaminosas – do final do século XIX, que autorizavam o emprego de força policial para por fim a greves, como a que ocorreu no caso das Indústrias Pullman em 1894 (que paralisou totalmente o sistema ferroviário americano) e, pior ainda, que legitimavam a contratação de “exércitos privados” para por fim a piquetes, como nos infaustos acontecimentos na siderúrgica de Andrew Carneggie em Homestead, Pennsilvânia, no ano de 1892 e que acabaram em mortes.
Várias outras intervenções absurdas do Judiciário americano em movimentos grevistas ocorreram ainda durante a tristemente lembrada “Era Lochner”. Exatamente para reverter essas intervenções judiciárias que com suas injunctions provocavam enorme desequilíbrio nas negociações entre capital e trabalho, o Congresso dos EUA logrou aprovar em 1932 a Norris-La Guardia Act (anti-injunction bill), e desde então acabou-se com a possibilidade de intervenção judicial para obrigar trabalhadores a voltarem ao trabalho durante uma greve.
Mas essa, pasme-se, não foi a decisão mais extravagante da semana que passou. Às vésperas da greve geral convocada para o dia 14 de junho, a desembargadora Sonia Mascaro, do TRT 2, em decisão monocrática (e autocrática, eu diria), pura e simplesmente proibiu os trabalhadores da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) de entrarem em greve e os obrigou a “trabalharem normalmente”, sob pena de multa de um milhão de reais ao sindicato.
Na decisão, alegou que o caráter da greve era político porque o movimento “insurge-se contra as propostas governamentais de reforma previdenciária”.
Aduziu ainda que a paralisação “deveria ser essencialmente espontânea”(?!). E complementou “na verdade, não se trata de greve, mas de movimento social fomentado”. Confesso que em trinta anos atuando perante a Justiça do Trabalho, jamais li algo tão chocantemente retrógrado.
À parte o caráter absolutamente antiliberal desta decisão, o que mais impressiona é que ela simplesmente revogou o art. 9º. da Constituição: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.”
Repito o que já é translúcido: cabe aos trabalhadores decidir sobre os interesses a serem defendidos pelo instrumento da greve. In claris cessat interpretatio, diziam os sábios romanos. Não há nenhum outro requisito no sentido de que tais interesses devam ser imediatamente relacionados ao contrato de trabalho. Nem tampouco a Lei de Greve (7783/89) estabelece qualquer distinção quanto à natureza da greve. Portanto, não cabe ao Estado-juiz dizer o que os trabalhadores podem defender com a greve. Até porque, ao que consta, o direito de liberdade de pensamento e expressão ainda está em vigor no Brasil.
Pois, ao afirmar-se posicionamento contrário, entender-se-ia forçosamente que trabalhadores não podem fazer greve contra proposições legislativas ou ações do Poder Executivo que, a seu juízo, violem os seus direitos. Ora isso seria um absurdo em qualquer estado democrático de direito!
Trabalhadores da Inglaterra, da França e da Alemanha vivem entrando em greve para se opor a propostas governamentais e não se tem notícia de que o Poder Judiciário desses países civilizados intervenha para “obrigar” os trabalhadores a trabalharem contra sua vontade.
E, muito menos, de que a justiça naquelas ilustradas paragens multe as entidades sindicais em milhares de euros caso descumpram a decisão.
Alguém há de objetar: e se houver abuso, especialmente em atividades essenciais? O próprio parágrafo segundo, do art. 9º. da Constituição contem a resposta: “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
Aliás, nem precisava estar previsto isso na Constituição. Todo e qualquer direito constitucional pode ser abusado e em casos que tais incide a regra de responsabilidade civil. Mas a mera pressuposição da “possibilidade de abuso”, puramente especulada no caso, não pode por si só ensejar a supressão do direito constitucional. É o mesmo, vejam, que ocorre com a liberdade de imprensa.
Não se admite que o Judiciário estabeleça uma censura prévia, vedando antecipadamente a publicação de matéria que suponha abusiva.
Pois isso resultaria no malferimento do próprio direito constitucional de liberdade de expressão. Assim também, não se pode fazer uma espécie de “interdito prévio” ao direito de greve, sob pena de inviabilizá-lo.
Ademais, dizer que “greves políticas” não são admitidas, além de violar frontalmente o artigo 9º da Constituição, é um contrassenso em si. A interrupção do trabalho para reclamar um direito, seja qual for, é em si um ato político. Não há greve que não seja política, isto é, um ato de exercício de poder coletivo reconhecido pelo Estado como estando além da dimensão contratual estritamente privada e individual da relação de trabalho.
A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), pelo seu Comitê de Liberdade Sindical, estabelece em seu verbete 542: “A declaração de ilegalidade de uma greve nacional em protesto pelas consequências sociais e laborais da política econômica do governo e sua proibição constituem uma grave violação da liberdade sindical”. Notem: “grave violação”.
O maior paradoxo da decisão do TRT 2 me parece o seguinte: a Constituição não proíbe aos sindicatos “fazer política”; ao contrário, isso lhes é reconhecido como um direito, já que entidades sindicais são associações civis que simplesmente “projetam” na dimensão coletiva os direitos liberais (atenção, falsos liberais!) de participação política de seus associados. A mesma Constituição, no entanto, proíbe os juízes de “atividade político-partidária”, o que claramente ocorre quando uma decisão, violando a literalidade da Constituição, fundamenta-se exclusivamente em opinião meramente ideológica do magistrado, sem indicação de qualquer base legal.
Então, o resultado é esse que vemos: decisões inconstitucionalmente políticas proíbem greves constitucionalmente políticas.
E, diga-se, há precedente lamentável do TST no mesmo sentido, proibindo greves políticas (“contra o Estado”, “conflito entre trabalhadores e governo”), proferida em um caso em que empregados de empresa estatal suspenderam o trabalho para protestar contra projeto de privatização da empresa, como se isso, aliás, não fosse afetar futuramente os seus contratos de trabalho.
É interessante que alguns de nossos (autoproclamados) liberais, aqueles mesmos que durante a Reforma Trabalhista acusavam equivocadamente toda a CLT de ser fascista, aplaudem esse tipo de decisão estapafúrdia que representa justamente aquele pequeno e diminuto pedaço da CLT que de fato emulava o fascismo: a intervenção do Estado, pelo seu braço judiciário, nos conflitos coletivos laborais.
Eu gostaria muito de ver esses liberais, sempre tão encantados com os Estados Unidos (que na realidade não conhecem), proporem uma Norris La-Guardia Act: a proibição de que o Judiciário, via poder normativo, intervenha em greves para declarar a sua abusividade ou ilegalidade ou de que adote qualquer medida que obrigue trabalhadores a comparecerem ao trabalho. Eles não vão apoiar isso porque não são liberais de verdade, mas sim conservadores reacionários com suas “ideias fora do lugar”.
No início do ano, muitos que lutam e defendem os direitos sociais no Brasil estavam preocupados com uma declaração do Presidente da República, no sentido de que poderia propor a extinção da Justiça do Trabalho. A esses espíritos desassossegados digo hoje que podem dormir tranquilos, pois a prevalecer em nosso ordenamento jurídico as “injunctions” antigreve e a perseverar aquele tipo de jurisprudência antisindical, o patronato jamais permitirá que se extingam os tribunais trabalhistas. Quando muito, talvez proponham uma mudança na denominação dos seus órgãos judiciários, para que sejam doravante designados como “Varas Empresariais”.
*CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.