Medidas ideológicas marcam os primeiros atos do governo Bolsonaro

Desmonte do Ministério do Trabalho, mudanças da Funai para a pasta dos Direitos Humanos e a extinção da secretaria para políticas LGBTQI+ evidenciam a influência de grupos de direita na máquina governamental

FATOS RELEVANTES E MEDIDAS DO GOVERNO

Oportunidades ocupacionais e renda

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mostram que a taxa de desocupação no Brasil atingiu 11,6% no último trimestre de 2018, 0,3 ponto percentual menos que no trimestre de julho a setembro de 2018. Em relação ao mesmo trimestre do ano de 2017, a taxa apresentou estabilidade. A taxa de desocupação média anual foi, em 2018, de 12,3%, contra 12,7% em 2017.

A Medida Provisória 870/2019 determinou a reestruturação do governo e desmontou o Ministério do Trabalho e Emprego. As atribuições do extinto MTE foram realocadas em grande parte para o Ministério da Economia, com importante exceção à Coordenação de Registro Sindical, deslocada para o novo Ministério da Justiça.

Direitos Humanos

A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi transferida do Ministério da Justiça para o Ministério de Direitos Humanos, comandada pela pastora evangélica Damares Alves. A Funai perdeu a atribuição de demarcações de territórios indígenas, agora submetida ao Ministério da Agricultura, assim como a política de identificação e demarcação de territórios quilombolas. A ministra dos Direitos Humanos pediu a suspensão, em 2 de janeiro, de um contrato de R$ 44,9 milhões entre a Funai e a Universidade Federal Fluminense, alegando valores exorbitantes e afirmando que o contrato era um exemplo da caixa-preta dos órgãos federais. O general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas assumiu a presidência do órgão.

Franklimberg atuou como conselheiro da mineradora canadense Belo Sun Mining, que lidera um projeto de exploração de ouro na Amazônia e tenta autorização para fazer a maior exploração industrial do mineral na história do Brasil, nas margens do rio Xingu, próximo à hidrelétrica de Belo Monte. A Terra Indígena dos Awá Guajá, no Maranhão, foi invadida. O povo Awá Guajá é classificado pela Funai como de “recente contato”.

Fazendeiros estão instalados, árvores foram derrubadas e bois estão pastando em alguns locais de suas terras.

A MP 870 coloca organizações da sociedade civil sob controle – e vigilância – da Secretaria de Governo, sob a justificativa de que o Planalto precisa monitorar e fiscalizar o uso de recursos públicos por entidades que têm convênios e parcerias com o governo. A ONG Human Rights Watch (HRW) solicitou audiências em Brasília e manifestou a contrariedade com a MP 870.

Foi extinta a secretaria nacional exclusiva para políticas LGBTQI+ -A ministra Damares afirmou que o governo construirá políticas para “fortalecer as famílias”. A secretária da Família, a advogada Ângela Gandra Martins Silva, irmã de Ives Gandra Filho, ex-presidente e ministro do TST que colaborou com a reforma trabalhista, disse que as convicções religiosas dela ou da ministra não irão impedir o diálogo com grupos como o LGBTQI+. A cartilha voltada à saúde de transexuais foi retirada do ar.

Direitos da pessoa com deficiência – O canal na internet – TV Ines, mantido pelo MEC e que exibe programas para a população surda, retirou do site uma lista de programas e filmes. Foram suprimidas dezesseis biografias de filósofos e acadêmicos, como Antônio Gramsci, Walter Benjamin e Karl Marx, Emile Durkheim e Stuart Hall, Nieztsche, Jean Jacques Rousseau. Também foram retirados o filme de Cacá Diegues “Bye Bye Brasil” e o documentário “Uma longa viagem”, de Lúcia Murat, que trata da ditadura militar, além de uma entrevista concedida pelo deputado Jean Wyllys (PSOL).

Educação, Esportes e Cultura

Nomeações – Dois dos quatro secretários nacionais do MEC estão ligados à educação tecnológica, oriundos da gestão da rede paulista de ensino técnico: Luiz Tozi, secretário executivo, e Tania Almeida, secretária de Educação Básica. Ligado a Olavo de Carvalho, Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização, é defensor de homeschooling. Bolsonaro defendeu a educação tecnológica em Davos, afirmando que é preciso “promover uma educação que prepare nossa juventude para os desafios da quarta revolução industrial, buscando pelo conhecimento reduzir a pobreza e a miséria”.

O piso salarial do magistério foi reajustado para R$ 2.557,74 a partir de 1º de janeiro. O Ministério da Educação anunciou o reajuste de 4,17%, conforme determinação do artigo 5º da Lei no 11.738, de 16 de julho de 2008. O valor corresponde ao vencimento inicial dos profissionais do magistério público da educação básica, com formação de nível médio, modalidade normal, jornada de quarenta horas semanais.

O governo incluiu na lista de metas dos cem primeiros dias a MP que regulamenta o ensino domiciliar, também chamado de homeschooling, que regulariza a situação das famílias que ensinam seus filhos em casa, a maioria delas devido à discordância da linha educacional oferecida nas escolas por motivos religiosos. O conteúdo da MP foi sugerido pela Associação Nacional de Educação da Família (ANED).

Seguridade Social Ampliada

O governo publicou a MP 871/2019, que cria novas regras de acesso aos benefícios do INSS. A MP altera regras de acesso ao auxílio-reclusão, ao salário-maternidade, ao auxílio-doença, à pensão por morte e dificulta a comprovação de união estável. Ainda, a normativa determina que, para requerimento, concessão e revisão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o requerente autorize acesso a seus dados bancários, o que antes não existia.

ANÁLISE CRÍTICA

O primeiro mês do governo, na dimensão social, foi intensamente pautado pelo grupo de interesse ideológico que assumiu parte da nova gestão. Representado especialmente pelos evangélicos fundamentalistas representados mais fortemente no governo pela ministra Damares Alves, o grupo também possui forte influência de Olavo de Carvalho, que aportou vários de seus seguidores no Ministério da Educação, em especial o ministro Ricardo Vélez. Destaca-se também, como em toda composição do governo, a presença dos militares em diversos cargos relevantes.

Grande parte das medidas das áreas da Educação e Direitos Humanos guardaram forte relação com essa questão. Certamente, ainda há que se aguardar qual será o real impacto desse preocupante processo nas políticas públicas. O fim de uma secretaria nacional de políticas LGBTT, no entanto, já é um início bastante preocupante. A existência de uma secretaria específica para a pauta garantia uma série de políticas públicas específicas com a perspectiva de garantir direitos e proteção a essa população que está em um nível de vulnerabilidade muito grave.

Outra medida de natureza ideológica muito preocupante é a previsão de fiscalização e monitoramento de Ongs pela Secretaria de Governo (MP 870), inclusive daquelas que não recebem verba pública. A medida ultrapassa o caráter meramente ideológico e representa praticamente uma declaração de guerra às entidades, que historicamente defendem uma ampla independência e autonomia dos governos. Este é um simbólico exemplo de como o grupo ideológico que assumiu o poder do governo federal flerta com o autoritarismo.

No entanto, não foram apenas as medidas ideológicas que tomaram conta da dimensão social do governo. Os grupos de interesse econômico também receberam atenção. Exemplo disso é a reestruturação da Funai, sob o Ministério dos Direitos Humanos, com o deslocamento da questão de demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, dominado pelos ruralistas.

A própria nomeação do novo presidente da Funai é um exemplo de atuação conjunta entre o grupo ideológico e os interesses econômicos que dominam o governo.

O novo responsável pelo órgão defende uma política de integração e de tutela da população indígena ao mesmo tempo que é defensor da exploração de minérios na região do Xingu, a maior reserva indígena do Brasil.

Por fim, com relação a oportunidades ocupacionais e de renda, os dados da PNAD, além de mostrarem que o mercado de trabalho segue praticamente estagnado, também representam, se ligados a outros dados, uma tendência de desistência do emprego formal como estratégia de ampliação da ocupação. Isso porque 2018 apontou uma alta na taxa de desalento, chegando a 4,7 milhões de brasileiros, o que representa o número de pessoas que desistem de procurar trabalho e, portanto, não compõem a taxa de desocupação. Ainda, crescem as taxas de subutilização e o número de trabalhadores por conta própria e informais. Isso significa dizer que, mesmo entre os ocupados, a realidade do mercado de trabalho brasileiro ainda é de enorme precarização.

A distribuição das atribuições do extinto MTE também merecem destaque especialmente porque toda a pauta de política de trabalho e renda foi deslocada para o Ministério da Economia, o que demonstra a visão de trabalho que possui o novo governo eleito, notadamente alinhado com os interesses do mercado financeiro, nesse ponto liderado pelos “Chicago Oldies”. O setor de registro sindical, no entanto, foi deslocado para o Ministério da Justiça, num preocupante movimento que indica uma possível perseguição às entidades sindicais.

Essas medidas apontam para uma das maiores incógnitas do governo Bolsonaro. Como medidas de caráter meramente ideológico e que atendam a grupos de interesse econômico vão responder aos dilemas da dimensão social no Brasil? Nesse primeiro mês, não houve nenhuma medida do governo efetivamente vinculada a essa questão. Ao que parece, o governo acredita que a Reforma da Previdência é o começo do milagre.

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