Crise do Pacto Federativo: Dívidas Públicas Estaduais

Este artigo é o primeiro número de uma série elaborada a partir da Fundação Lauro Campos para o Observatório da Democracia que tem como objetivo analisar a crise do pacto federativo e suas implicações na conjuntura brasileira. O presente artigo trata do papel da Dívida Pública Brasileira na interdição do Pacto Federativo.

A Federação Interditada

Acrise do Pacto Federativo não é um fenômeno recente. A história republicana brasileira é marcada pelas instabilidades na estruturado arranjo político entre os entes da federação. Isso se dá, como é de se esperar, pelas disputas de prerrogativas e competências entre os atores políticos no interior do sistema republicano. Tais instabilidades, no entanto, se apresentam como crise quando as regras do jogo são violadas de maneira a alterar objetivamente a natureza do estado, o tornando, de fato, unitário. Esta tensão estrutural do sistema federativo não é uma particularidade brasileira, no entanto, cabe destacar o registro próprio com o qual se expressa em nosso país.

A condição periférica do país interfere de maneira substantiva no sistema federal e, por sua vez, interditam seu funcionamento. Autonomia administrativa das unidades subnacionais está em contradição com condicionantes geradas por relações dependentes no plano internacional. Assim os poderes externos “sobredeterminam”o padrão de relação e comportamento dos atores políticos nacionais, criando entre eles um processo de hierarquização que não responde às demandas nacionais, outrossim, às expectativas dos polos de dominação no exterior. Esta sobredeterminação se desenvolve tanto na imposição de políticas antinacionais à administração estatal, como também no campo da ideologia, que impactam os atores políticos, ou seja, moldam sua visão de estado edo serviço público.

 A orientação liberal do estado, nas condições de uma nação periférica, impõe medidas de centralização de prerrogativas na União a fim de responder às demandas estrangeiras ou de setores internos associados a elas, em especial, aquelas provenientes do setor financeiro. Os governos dos estados e municípios, os elos subjugados do arranjo federativos, tornam-se indigentes, desprovidos de instrumentos de execução do programa político para o qual foram eleitos. São lançados ao duplo condicionamento, tanto na ponta da arrecadação quanto dos gastos públicos.

Logo, não é exagero classificar a atual situação dos estados e municípios brasileiros como sintomas de uma crise do pacto federativo; na justa medida em que as condições executivas dos governos estaduais e municipais estão completamente subordinadas à agenda da União. Se um sistema federativo é a articulação e autonomias recíprocas entre os entes, não há federação quando as prerrogativas específicas de um está submetida à discricionariedade legislativa de outro.

Destaco a seguir, um dos instrumentos que colaboram para o enfraquecimento federal e o esvaziamento da capacidade executiva dos estados e municípios.

Sistema da Dívidas Dívidas Estaduais

A União, em 1997, ou seja, sobre o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), estabeleceu um “acordo” em relação às dívidas estaduais que agrupou os diversos débitos, inclusive aqueles de caráter mobiliário estadual, transformando eles em dívida consolidada junto aos bancos privados, isso sem nenhum abatimento ou concessão. Com esta manobra, as dívidas estaduais saíram da esfera de governabilidade dos sistemas bancários estaduais e passaram a estar completamente subordinada aos juros do setor privado, crescendo à taxa iniciais de 20% ao ano sobre o principal. A União pagou com títulos federais a dívida pelo seu valor de face junto ao bancos privados, ou seja, não considerando o devido valor de mercado da mesma. (1)

Esta medida veio acompanhada do processo de privatização dos bancos estaduais, retirando dos estados as possibilidades de realizarem políticas econômicas regionais, a expansão do crédito e uma gestão soberana dos juros. Sem bancos, os estados estão amputados de sua condição de produzir um déficit controlado em prol de um projeto econômico estadual de natureza expansiva, que geraria crédito, emprego, arrecadação e bem-estar.

Os mentores intelectuais deste ataque aos estados não se encontravam apenas na equipe econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso,o elemento externo sempre está presente em manobras como esta. Fernando Henrique Cardoso, enquanto presidente, constituiu um governo compartilhado com os organismo internacionais e o Departamento de Estado dos Estados Unidos da América – EUA. A orientação do Fundo Monetário Internacional – FMI e do Banco Mundial foram decisivas em seu governo. O termo básico era: a União deve se comprometer a realizar superávit primário no orçamento federal. A agenda de privatização dos bancos e empresas públicas estaduais era o caminho mais rápido para eliminar o déficit nas contas públicas.Porém, em uma perspectiva soberana, o déficit não é uma condição negativa, por ser, na realidade, uma aplicação no desenvolvimento econômico e na economia real. Porém, a narrativa contra o déficit,após uma milionária campanha midiática, ganhou a sociedade. Apolítica de superávit primário adotada desde então tem como propósito principal drenar recursos públicos, entre eles estaduais e municipais, para o setor financeiro privado e internacionalizado.

O valor da dívida estadual com a União em 1997 era de 112 bilhões de reais, até então foram pagos 277 bilhões de reais, e ainda faltam aproximadamente 493 bilhões de reais a serem pagos. Não há objetivamente condições econômicas estaduais para a quitação desta dívida, tampouco é legítima e razoável dentro de um arranjo federativo.

As dívidas estaduais e municipais são o instrumento de chantagem da União sobre os entes federativos. É por meio dela que se extrai o apoio à agenda neoliberal do governo federal, forçando privatizações e o ajuste fiscal nos estados.

Serviços Públicos Estaduais: Colapso anunciado

Após mais de duas décadas do “acordo” sobre a dívida pública dos estados, a situação tem se deteriorado de maneira acelerada. As promessas de estabilização das contas estaduais feitas nos anos noventa contrastam com os resultados alcançados até então. A dívida dos estados cresceu quatro vezes, as contas estaduais entraram em colapso e os serviços públicos estão obstruídos em decorrência dos limite de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal- LRF.

A medida razoável em um momento de crise é combater os instrumentos que a reproduzem; no entanto, a União e a maioria dos governadores optam por medidas cosméticas, que apenas aprofundam os impactos sociais e econômicos da crise.

O exemplo mais atual do drama federativo está na possibilidade de julgamento pelo Supremo Tribunal federal, no dia 27 de fevereiro, da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 2.238, que está sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A ação cria a possibilidade dos governos estaduais reduzirem salários e a jornada de trabalho dos servidores estaduais quando os gastos com a folha de pagamentos ultrapassar os limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), que fixa o limite prudencial  de 46,55% da receita corrente líquida e máximo de 49,00%.

Caso seja julgada improcedente a ADI 2.238, a estabilidades dos servidores públicos estaduais está ameaçada, pois a maioria dos estados já encontram-se acima do limite prudencial de gastos com a folha de pagamento estabelecidos pela LRF. O corte de salários e a redução dos serviços irão prejudicar de maneira profunda o funcionalismo e os serviços públicos oferecidos à população. Significará menos profissionais de saúde, educação, assistência social, segurança e fiscalização trabalhando, ou seja, menos direitos sendo garantidos.

O arrocho sobre os servidores estaduais e a ameaça aos direitos estabelecidos da LRF são componentes do sistema das dívidas  estaduais. Na medida em que os cortes na folha de pagamento tem como objetivo garantir o pagamento de juros e a drenagem de recursos para o setor financeiro.

Acrise do pacto federativo enriquece os bancos, retira direitos da cidadania e enfraquece as conquistas sociais alcançadas pela Constituição de 1988. O ataque ao pacto federativo é um golpe contra a democracia.

Pedro Otoni é Mestre em Ciência Política, especialista em Economia Política, bacharel em Direito e colaborador da Fundação Lauro Campos.

Nota

  1. Quanto a esta operação de consolidação e pagamento com títulos,  ainda cabe a discussão sobre sua nulidade, o que não é uma questão menor. Conforme destaca José Carlos de Assis, em sua obra “Acerto de Contas: A dívida nula dos Estados” (2017), ao pagar com títulos de dívida federal, que é um ativo com contrapartida de um passivo da cidadania inteira, incluindo a dos estados e municípios, deu a final, em nome da sociedade, quitação plena da dívida dos estados e municípios. Ou seja, o que está sendo cobrado hoje pela União, já foi pago, com recursos da própria sociedade, sendo nula as atuais dívidas estaduais.

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