Bolsonaro não está derrotado: suprir as necessidades do povo na quarentena funciona mais do que hashtags

Foto: Marcos Côrrea/PR/Fotos Públicas

A posição do Presidente Jair Bolsonaro contra as medidas de combate ao coronavírus, especialmente, contra o isolamento social, tem provocado um desgaste contínuo em sua imagem. Se parte da população, inclusive setores da burguesia brasileira, não lhe apoiavam totalmente, ao menos o toleravam. Isso mudou a partir de suas declarações de desdém e irresponsabilidade com a vida de milhões de brasileiros frente a maior pandemia mundial em um século. O já histórico – negativamente – pronunciamento em cadeia nacional da noite de 24 de março foi o ponto de ruptura (pelo menos momentâneo) para boa parte da sociedade brasileira com qualquer tipo de crédito que o Presidente reservava para fora da base social que o sustenta.

Entretanto, três fatores de grande importância precisam ser relembrados neste momento em que os mais apressados (à esquerda e à direita) dizem que “Bolsonaro acabou”, ou que ele “já não governa mais”.

1- Não há contradição na condução econômica do país entre o governo, o empresariado (brasileiro e estrangeiro) e militares. Todos rezam na cartilha neoliberal de depredação total do patrimônio público – como o SUS, nossa única arma contra o coronavírus – e de barbarização das relações de trabalho que vem em ritmo acelerado desde a Reforma Trabalhista de 2017. É certo que há um conflito intraclasse na burguesia brasileira em relação ao controle do governo (entre a burguesia clássica e uma nova, emergente, ligada mais carnalmente ao bolsonarismo). Também é evidente que o presidente estica a corda em relação a operadores importantes da classe dominante – como a grande imprensa e o Congresso. Mas, é necessário lembrar que todos estes, antes do aparecimento do vírus, estavam muito satisfeitos com o andamento da economia, mesmo essa apresentando alta taxa de informalidade, desemprego estabilizado em patamares elevados, crescimento inexistente e dólar a R$ 5,00. O alto comando das Forças Armadas, ao que parece, apoia integralmente essa política econômica do desastre, contanto que seus privilégios sejam mantidos. Para que a classe dominante apoiaria uma eventual saída de Bolsonaro se todos os seus desejos são atendidos?

2- Com a convivência já de alguns anos com a extrema-direita brasileira, e um ano e meio de governo Bolsonaro, é incrível como alguns comentaristas e forças políticas insistem em tratar do tema como se a “normalidade” liberal-republicana estivesse ainda em prática. É preciso chamar as coisas pelo nome, para que não se criem mitos que nos empeçam de ver o real perigo que estamos correndo no atual momento histórico do país. Bolsonaro e o agrupamento social que o apoia são o fascismo, e o objetivo deste é, sempre, a construção de um Estado autoritário, não importa quanto tempo leve tal operação. Bolsonaro não se preocupa nem um pouco se o Congresso e o STF não aprovam suas medidas, se a grande imprensa lhe critica, ou se parte da classe média que antes o apoiava agora bate panelas. Da mesma forma, seus atos não são “loucura” ou “psicopatia”, por mais que provoquem uma repulsa instantânea a amplas extratos da sociedade brasileira. Há estratégia no fomento do caos.

O bolsonarismo oferece, de um lado, o fim do isolamento social, o que significa a morte de milhões e o colapso do sistema de saúde; do outro, o confinamento sem renda, já que seu governo atrasa e impede o quanto pode as políticas emergenciais de sobrevivência econômica para trabalhadores, micro e pequenas empresas, o que, se mantendo, provocará saques e enfrentamentos entre os famintos, os que possuem alguma renda e as forças de segurança. O caos é o ambiente para a concentração de poderes e a justificativa para o uso indiscriminado da violência como método para a manutenção da “ordem”. Os que desdenham dessa possibilidade revelam uma ignorância enorme em relação à história do Brasil e a capacidade que nossa elite possui de construir consensos sociais a partir da brutalidade. É preciso destacar que Bolsonaro mantém uma base social coesa, mesmo na pandemia, que, segundo os recentes levantamentos do Datafolha (1) e da XP Investimentos (2) continua alcançando 1/3 da população. Igualmente, é necessário lembrar o “evento-teste” das milícias bolsonaristas realizado no início do ano no Ceará, que parece apagado de nossa memória política devido à emergência sanitária. Estes dados evidenciam que o bolsonarismo continua trabalhando incansavelmente pelos seus objetivos autoritários. O caos para o fascismo não é uma crise, mas sim uma oportunidade.

3- Por último, é uma novidade muito bem-vinda a manifestação de parte da população com panelaços contra o presidente. Mas, novamente, é necessário analisar com serenidade. Os panelaços são realizados, e as imagens reforçam, em áreas de residência da classe média e média-alta. Os setores médios têm como uma das suas características políticas o imediatismo e a busca por soluções aparentemente fáceis de se imaginar, mas difíceis de se concretizarem. Esses setores estão cumprindo, de maneira acertada e contagiante, um importante papel de desgaste do bolsonarismo que já é detectado até nas pesquisas de opinião (redução da avaliação “regular” do governo e aumento da opção “ruim/péssimo”). No entanto, se esse extrato social pode apostar todas as suas fichas em um #Fora Bolsonaro, o mesmo não se pode dizer das organizações populares que se colocam como verdadeira oposição à extrema-direita.

A maioria da classe trabalhadora brasileira pode até dividir hoje a mesma indignação contra Bolsonaro que os setores médios, mas não compartilha das mesmas condições sanitárias e econômicas necessárias para meses de isolamento social. Para a maioria da população que está desesperada em encontrar o equilíbrio entre se proteger do vírus, botar comida na mesa e pagar as contas, soa como piada de mau gosto discutir impeachment em um momento como esse. Se aqueles que se colocam como representantes dessa classe e se preocupam com o destino imediato dessas pessoas não agirem junto a essas bases pelas suas necessidades mais imediatas, o discurso do bolsonarismo de “isolamento vertical” será facilmente aceito por força da realidade. A já citada pesquisa da XP Investimentos apresenta um grande apoio ao isolamento social, mas, ao mesmo tempo, mostra que a maioria dos entrevistados acredita que este durará apenas 1 mês, o que, sabemos, não será a realidade. Até que ponto a população, frente às parcas medidas econômicas realizadas até o momento, manterá o isolamento? O discurso do “isolamento vertical” a partir do segundo mês de quarentena pode ser o retorno de extratos numerosos da classe trabalhadora à esfera do bolsonarismo, um refluxo na explosão anti-Bolsonaro registrada no mês de março, se mais não for realizado em termos de saúde e renda.

Os próximos meses serão de volatilidade diária e exigirão uma capacidade de atuação política de alta complexidade por parte das forças progressistas. A maioria delas não está à altura deste desafio, se entregando muitas vezes a palavras de ordem imediatistas tentadoras, mas de eficácia duvidosa. A sobrevivência, literalmente, da classe trabalhadora depende da pressão permanente pelas condições sanitárias e econômicas que permitam a quarentena. Essa é a luta principal hoje. Sem isso, a falsa dicotomia bolsonarista entre “saúde ou emprego” triunfará, mais cedo ou mais tarde. Mesmo que Bolsonaro venha a cair durante a pandemia, o que é improvável, apesar de não impossível, não será a esquerda e os trabalhadores os atores, nem os maiores beneficiados, deste possível intento. Mas, aquelas forças que passarem por esse momento difícil junto às massas estarão muito melhor credenciadas para os embates futuros da política brasileira, inclusive a continuidade ou não do governo Bolsonaro.

Roberto Santana Santos é Doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política pela UERJ. Atualmente Professor da Faculdade de Educação da UERJ e Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO.

Notas:

1-

http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/04/1988648-aprovacao-a-ministerio-da-saude-cresce-enquanto-sobe-reprovacao-a-bolsonaro-na-crise-do-coronavirus.shtml

2 –

https://conteudos.xpi.com.br/politica/relatorios/pesquisa-xp-abril-2020-extra-desaprovacao-do-governo-bolsonaro-aumenta/

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