Relatório sobre Cultura – Novembro/2019

OS CONSERVADORES DAQUI  E OS COMUNAS DE LIVERPOOL

Em princípios de setembro, quando da publicação do nosso Relatório neste espaço (do qual involuntariamente nos ausentamos nos dois últimos meses, por razões de força maior), fizemos questão de apontar que a imobilidade do governo federal na área da Cultura começava a dar lugar a uma inusitada agitação, a qual, no entanto, preservava os mesmíssimos vícios vindos com os burocratas da nova política estatal: ausência de projeto, qualificação insuficiente, incompetência gestora, incultura explícita, desrespeito à cidadania, arrogância e incivilidade notórias… e muito mais, etc., etc. Fato emblemático daquele momento de divisão-de-águas talvez tenha sido a postagem no Facebook em que Roberto Alvim, então diretor do Centro de Artes Cênicas e Dança da Funarte, além de ofensas genéricas à classe artística, dirigiu grosserias a D. Fernanda Montenegro, figura magna do Teatro Brasileiro que, do alto (e bota alto nisso!) dos seus 89 anos, só por isso mereceria todas as honras e reverências da nação, principalmente das nossas “autoridades” culturais. Igualmente representativo daquele momento de inflexão rumo ao caos e à degradação cultural foi, como veremos, a realização da CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora), o mais tradicional encontro da direita norte-americana, ocorrido em outubro na cidade de São Paulo, com o beneplácito da chamada Cúpula Conservadora das Américas. Nesse encontro, tal como divulgado em nosso Relatório sobre Cultura de setembro, os líderes desta Cúpula poderiam vir a indicar “alguém para o cargo de Secretário Especial da Cultura, com o que o governo de plantão passaria o recibo integral da ocupação ideológica de sua máquina cultural.”

Foi exatamente o que ocorreu. E tudo indica que foi a partir dos dois acontecimentos emblemáticos acima mencionados que o quadro da cultura brasileira, principalmente o de sua gestão pública, desandou pra valer até chegar ao descalabro atual, fazendo supor que o imobilismo inoperante de antes era muito melhor que a balbúrdia errática e incompetente que passou a demarcar o atual oficialismo cultural do país.

À guisa de exemplo, tem-se que, de dois meses a esta parte, a assumida militância direitista do dramaturgo Roberto Alvim deflagrou o clima de barata-voa na Funarte, o que causou a demissão de vários servidores do órgão pelo Ministro da Cidadania Osmar Terra e levantou a suspeita generalizada de que o próprio Alvim ambicionava a Presidência daquela Fundação, talvez como prêmio pelas ofensas que dirigira à grande dama Fernanda Montenegro, vistas com simpatia pelo Planalto. Só que o Capitão Bolsonaro concedeu ao belicoso Alvim uma recompensa muito maior que a esperada: nomeou-o titular da própria Secretaria Especial da Cultura (SECULT), exatamente no mesmo dia (7/11/2019) em que transferiu este órgão para o Ministério do Turismo, talvez a pasta mais propícia às traquinagens laranjais eventualmente desejadas para a cultura.

Cumprindo o projeto traçado pela Cúpula Conservadora das Américas, Alvim finalmente chegou à SECULT. E assumiu-a “de porteira fechada”, com plena autonomia para, a partir dela, convocar profissionais conservadores para a montagem de uma máquina de guerra e combate estatal ao marxismo cultural que hoje seria hegemônico no país. E assim o fez, inclusive distribuindo os principais cargos da administração cultural do país a pessoas escolhidas por critérios ideológicos e/ou religiosos, a maioria delas pouco conhecidas ou mesmo totalmente desconhecidas e sem histórico de serviços relevantes prestados à cultura do país. Algumas dessas pessoas revelam mesmo não ter qualquer experiência na área para a qual estão sendo chamadas, como é o caso do bisonho Rafael Nogueira, nomeado Presidente da Biblioteca Nacional, que se apresenta como aspirante a filósofo e polímata (pessoa que diz ter conhecimentos em áreas diversas, ou seja, o famoso “especialista em assuntos gerais” de que falam os botequins), mas deve seu cargo ao fato de ser seguidor de Olavo de Carvalho e ter sido palestrante na tal Conferência de Ação Política Conservadora, cujo crachá ainda ostenta em fotos na imprensa; ou o de Katiane de Fátima Gouvêa, nova Secretária do Audiovisual, que, mesmo sem ter qualquer experiência prévia com cinema e TV, já deu palpites sobre uma cogitada dissolução da Ancine e passará a decidir os destinos da área, certamente iluminada por sua sapiência como membro da Cúpula Conservadora das Américas; ou ainda o da famosa Reverenda Jane Silva, que, ungida pela condição de empresária e presidente da Associação Cristã de Homens e Mulheres de Negócios, assumirá a Secretaria da Diversidade Cultural até mesmo para mostrar que, à frente da SECULT, Roberto Alvim “começa a limpar a imagem do Brasil no Exterior” – sem saber que no último dia 22/11, na Conferência Internacional das Línguas Portuguesa e Espanhola, realizada em Lisboa, o mesmo saiu vaiado por ter armado o maior “barraco” contra o Prof. Ramiro Noriega, da Universidade das Artes do Equador; poucos dias antes, num evento da Unesco em Paris, Alvim já havia protagonizado cenas de baixaria explícita ao falar contra a arte brasileira dos últimos 20 anos para uma constrangida plateia de ministros e embaixadores de vários países, que manifestaram sua indignação através de uma discreta, mas incisiva, réplica do ministro da Suíça, Alain Berset. Este, claro, sabia o que era cultura e compostura internacional.

A lista dos representantes do bolsonarismo cultural, ungidos como dirigentes supremos da cultura no Brasil, vai adiante: ela se completa com Sérgio Nascimento de Camargo, que se auto-identifica como um “negro de direita e contrário ao politicamente correto”, cuja posse como novo Presidente da Fundação Palmares foi sustada pela Justiça Federal, que entendeu ofensivas aos afrodescendentes as declarações deste que o próprio irmão considera um capitão-do-mato; com a nova Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, a atriz e roteirista Letícia Dornelles, rejeitada pelos pesquisadores do órgão por não ter o perfil acadêmico exigido ao cargo, nem ter a aprovação do conjunto de funcionários da casa; com Naura Schneider, atriz e cineasta de obra desconhecida, que chega à diretoria do Centro de Artes Visuais da FUNARTE após um estágio de imersão cultural num dos galhos da goiabeira do Ministério Damares Alves; com Camilo Calandreli, o novo Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, outro olavista convicto, fundador de um simpósio conservador em Ribeirão Preto, dado como músico formado pela USP, ainda que haja dúvidas se a Música foi algum dia apresentada a ele; com o já famoso Tutuca (Edilásio Barra), pastor, apresentador e colunista social, guindado à Superintendência de Desenvolvimento Econômico da Ancine via efeitos especiais de fazer inveja à pobre Hollywood; e, como apoteose final, com o novo presidente da Funarte, o hoje celebérrimo Dante Mantovani, também membro da Cúpula Conservadora das Américas e aluno de Olavo de Carvalho, tido ainda como maestro e doutor em ciências da linguagem pela Universidade de Londrina. É ele que, com suprema iluminação, vem mostrando ao mundo que os Beatles surgiram para implantar o comunismo sob influência de Adorno, que o rock incentiva o sexo e a indústria do aborto, que o fascismo é um movimento de esquerda, que as fake news são um conceito globalista em prol da grande imprensa, que a Unesco é uma máquina de promoção da pedofilia, que os serviços de inteligência, tanto americanos como soviéticos, estão infiltrados na indústria discográfica, além de revelações outras que mostram como somos incultos e despreparados para os mistérios da vida e podem ser encontradas em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/12/rock-incentiva-industria-do-aborto-diz-novo-presidente-da-funarte.shtml .

É com colaboradores deste quilate que se está construindo a “Política Cultural” do governo Bolsonaro. Isso talvez explique por que, mesmo quando há recursos disponíveis, os projetos culturais não se viabilizam no país, ou só o fazem de forma precária e lastimável: embora a lei orçamentária para 2019 tenha previsto um total de 1,4 bilhão de reais para o Fundo Nacional de Cultura, somente uma fração ínfima deste total vem sendo utilizada, não havendo quem creia que o atual governo possa vir a alcançar a média de 662,6 milhões de reais liberados pelo FNC nos últimos cinco anos. Embora tenham sido incorporados a novos Ministérios (primeiro o da Cidadania, agora o do Turismo) os órgãos oriundos do antigo MinC continuaram a receber dotações com as mesmas rubricas e valores anteriores, ainda que nenhum deles tenha chegado a executar mais de 15% do previsto na lei orçamentária. A Fundação Biblioteca Nacional e a Fundação Casa de Rui Barbosa são das que mais se empenham em aproveitar os recursos disponíveis, mas o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, somente conseguiu executar 39,3 milhões dos 517 milhões de reais de sua previsão orçamentária. Aferidos em março de 2019, todos estes números encontram correspondência no desempenho da Ancine, que, na mesma época, somente havia executado 17,7 milhões de reais, pouco mais de 10% do total previsto para este ano.

Mas faltando pouco mais de vinte dias para o fim de 2019, as perspectivas não são das mais animadoras. Prova disso é que um dos principais incentivos culturais do país, o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) está com 724 milhões de reais paralisados há sete meses e cuja liberação, em benefício de projetos para o cinema e a televisão, depende apenas de um documento que deveria ter sido aprovado desde o primeiro semestre pelo governo. Pelo que dizem, tudo depende da deliberação de um certo comitê gestor do Fundo Setorial, que deverá reunir-se nas próximas semanas, preferencialmente antes que os burocratas atrapalhem e que logo digam que Inês é morta.

O fato é que enquanto a cultura desanda, os alvins, nogueiras bisonhos, tutucas, mantovanis, calandrelis, reverendas janes, letícias, negros de direita e nauras em geral ficam por aí sem fazer nada – ou só atrapalhando, tremendo de medo daqueles comunistas de Liverpool.

Marcus Vinicius de Andrade

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