Relatório sobre Cultura – agosto/2019

PASSADE-SE

Na última segunda-feira, 2 de setembro, quando iniciávamos a elaboração deste Relatório mensal sobre Cultura, o Brasil foi surpreendido por mais um petardo lesa-sociedade desferido pelo chamado governo federal. Como se para provar que a Ignorãça não descansa nunca, principalmente quando se junta à truculência, eis que o Ministério da Educação (ou será Educassão?) anuncia, candidamente, o corte de mais 5.613 bolsas de mestrado e doutorado, ficando determinado que nenhum novo pesquisador terá financiamento para estudos e pesquisas neste ano.

Com isso, registra-se o terceiro cortes de bolsas em 2019. Desde o início do ano, o governo Bolsonaro já cortou 11.811 bolsas de pesquisa financiadas pela Capes, o que equivale a 10% das bolsas vigentes no início do exercício.
Como a desgraça nunca chega só, no dia 28/8 já havíamos tido notícia de que o Conselho Superior (Consun) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) havia se reunido extraordinariamente para determinar a suspensão, a partir de 1º de outubro até 31 de dezembro de 2019, dos contratos essenciais ao funcionamento daquela universidade, tais como os relacionados a serviços de energia elétrica, segurança, limpeza, controle de qualidade de água e pragas, imprensa, correio, telefonia e apoio logístico, além de recursos para viagens de campo, determinando-se até mesmo a anulação dos empenhos já autorizados. Assim, o funcionamento da Unifesspa só está garantido até o fim do corrente mês de setembro, o que constitui uma afronta ao povo do Pará e uma vergonha de dimensões amazônicas para o Brasil. Pior ainda, é saber muitas outras universidades nossas também estão assim.

Muitos podem achar estranha essa alusão a temas de Educação em um relatório cujo principal objeto é a Cultura. Ocorre que Educação e Cultura andam juntas, inseparáveis, visto serem os dois lados de uma mesma moeda: o saber. Lembro que, na escola primária, tive, como colegas, dois irmãos gêmeos cuja mãe batia em ambos sempre que um deles escondia ser autor de qualquer apronto cometido. Algum tempo depois, indagado sobre se eram mesmo irmãos, um deles respondeu sem vacilar: “– Como não? Sempre apanhamos juntos.” A prevalecer essa lógica, Cultura e Educação são irmãs indiscutíveis, de tanto apanharem juntas desse desgoverno que aí está, que bate indiscriminadamente em tudo que signifique conhecimento, informação, saber, talento ou coisa que o valha. Assim, apanham artistas, professores, universidades, orquestras, cineastas, pesquisadores, etc., sobrando também até pra instituições públicas de qualidade, como a Ancine, o Inpe, o Coaf, a Polícia Federal, a Receita, o Banco do Brasil, a Caixa… e por aí vai. Hoje, basta ter competência para entrar no couro, pois os boçais de plantão não toleram nada que não seja mediocridade assumida, exibida e festejada.

Talvez por isso, o reitor da UFBA, Prof. João Carlos Salles afirme, com razão, que “o Governo Bolsonaro vê a universidade como estorvo público”, após o que conclama o país a defender a autonomia e a diversidade do ensino público superior brasileiro (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/governo-bolsonaro-ve-universidade-como-estorvo-publico-diz-reitor.shtml).

Na mesma linha vai o Prof. Jorge Coli, da UNICAMP, que, em lúcido artigo na Folha de S. Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/09/submetidos-a-politica-dos-eua-repetimos-o-rei-da-vela.shtml ), afirma que as “atitudes nocivas que o governo da República desencadeia dia após dia (…) surgem da brutalidade mais incivilizada. (…) Uma delas é o extermínio do ensino superior e da pesquisa. Estão sendo demolidas as universidades e os órgãos de fomento, essenciais para a ciência, tecnologia e conhecimento, portanto imperiosos à prosperidade do país.” Vai adiante o articulista, ao mencionar o economista Paulo Gala, que escreveu no mesmo jornal: “Nosso nível de produção industrial está hoje 20% abaixo do nível observado em 2014 e apenas 20% acima do registrado nos anos 1980, uma tragédia.” Conclui o Prof. Jorge Coli: “Nisto, os atuais mandantes distinguem-se dos ditadores militares. Estes perseguiram professores por motivos ideológicos: destituíram, exilaram, torturaram e mataram. Contudo, se minhas contas são boas, criaram também 14 universidades federais. (…) É que os militares tinham um projeto desenvolvimentista e nacional para o país. Parecia-lhes importante o fortalecimento de uma indústria brasileira, com características e soluções próprias: basta lembrar, por exemplo, do Programa Nacional do Álcool, implantado em 1975.”

Com relação à Cultura de que nos compete falar, vemos que, depois de uma imobilidade que parecia até promissora, a gestão Bolsonaro começou a fazer das suas. E não tem sido um dia sim e outro não, como recomendou o presidente: agora, é toda hora. Haja privada.

Vejamos: no último 30/8, Bolsonaro afastou o Diretor-Presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema), dando início à sua anunciada ofensiva contra o cinema brasileiro. Ainda que se alegasse possíveis razões jurídico-administrativas, ficou claro que a celeridade do ato presidencial tinha, como objetivo, deflagrar logo a vingança contra um importante setor da cultura nacional, com vistas a controlá-lo oportunamente. Já antes, em 20/8, Henrique Pires, o Secretário Especial da Cultura do Ministério da Cidadania (órgão que substituiu o extinto MinC) havia pedido demissão de seu cargo, acertadamente alegando que o fazia não devido a ordens para que suspendesse um edital para projetos LGBT: isso teria sido apenas a gota d’água, após diversas tentativas do governo de censurar atividades culturais, cerceamento que havia oito meses a Secretaria vinha tentando impedir. Segundo Pires, o cerco à liberdade de expressão difundiu-se amplamente no governo e as pessoas “estão chamando censura por outro nome”. Esses episódios foram detalhadamente relatados pela jornalista e doutora em Sociologia da Cultura, Ana Paula Souza, na Folha de S. Paulo de 24/8. Estão lá para quem quiser ler.

Mas o que está ruim pode piorar – e muito. Informa Ana Paula que, aproveitando a sinalização de Bolsonaro, um grupo ultraconservador de extrema direita, denominado Cúpula Conservadora das Américas, pretendendo combater a “hegemonia cultural da esquerda”, vem se aproximando do Ministro da Cidadania Osmar Terra, pedindo-lhe o fomento oficial à produção de conteúdos que destaquem, tanto no cinema quanto no teatro, símbolos nacionais, bem como o patriotismo e a preservação da família. Para esse grupo, filmes, livros, peças e exposições cooptam mentes para o comunismo. Relata Ana Paula que o Ministério da Cidadania vem cedendo a tais injunções, e “o que podia soar como delírio, vai, semana após semana, se materializando em baixas, editais e ações.” A Cúpula realizou seu primeiro encontro formal no fim de 2018, em Foz do Iguaçu (PR), em evento que teve a presença de Eduardo Bolsonaro, o tal filho nº 3 do presidente, cotado para a Embaixada brasileira em Washington talvez para facilitar seu assumido lobby em favor da AT&T e outras empresas norte-americanas para mudar a legislação brasileira do audiovisual. Vê-se, por aí, que tudo se encaixa: os setores do audiovisual e das comunicações parecem ser o centro dos interesses estrangeiros no mercado cultural brasileiro, fato que fez a pouco conhecida Ancine “bombar” no noticiário nacional dos últimos tempos, alavancando também o nome do filho nº 3 como persona diplomática. Outras ações em prol desse retrocesso cultural planejado para o Brasil já se fazem anunciar: um militar graduado apresentou-se recentemente à Cinemateca Brasileira, em nome do governo, para propor a realização de uma Primeira Mostra de Filmes Militares, da qual seria o curador; o próprio Bolsonaro III anunciou que em São Paulo, em outubro próximo, se realizará uma reunião do CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora), o mais tradicional encontro da direita norte-americana; por fim, a cereja sobre o pudim (com direito à rima e tudo): a Cúpula Conservadora das Américas pode, em algum momento, pretender alguém para o cargo de Secretário Especial da Cultura, com o que o governo de plantão passaria o recibo integral da ocupação ideológica de sua máquina cultural.

Já há algum tempo vimos utilizando este espaço para afirmar, sem receio de erro, que o que de mais sólido se realizou em termos de Cultura no Brasil, ao longo do séc. XX, foi fruto das iniciativas estatais tomadas a partir do primeiro governo Vargas. Ali foram lançadas as sementes da proteção ao cinema (Instituto Nacional do Cinema Educativo), ao teatro (Serviço Nacional de Teatro) ao livro (Instituto Nacional do Livro), à radiodifusão (Rádio Nacional e Rádio Roquette-Pinto), ao patrimônio histórico-cultural (Serviço do Patrimônio Histórico Nacional), ao acervo museológico (Museu Nacional de Belas Artes e Museu Imperial), tudo isso alicerçado pela contribuição de expoentes da Cultura e servidores públicos dedicados como Gustavo Capanema, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Roquette-Pinto, Augusto Meyer, e muitos outros. Foram estes pioneiros e seus vários continuadores que, de geração em geração, fizeram o mais esplendoroso momento da arte e da Cultura brasileiras no séc. XX, da arquitetura de Oscar Niemeyer à música de Villa-Lobos e Tom Jobim, à literatura de Guimarães Rosa, Graciliano, Clarice Lispector, João Cabral e Drummond, ao Cinema Novo, à bossa-nova e à MPB, ao Teatro de Arena e ao Oficina, ao CPC e à poesia concreta, etc. etc.

O advento do neoliberalismo, especialmente a partir do governo Sarney, começou a jogar por terra toda essa efervescência cultural, substituindo-a, em nome da pós-modernidade, por manifestações de viés preferencialmente mercadológico e midiatizado, sob o controle de grupos econômicos nacionais e corporações transnacionais da então chamada indústria cultural, que hoje atende pelo nome-de-guerra economia criativa, mas continua sendo ainda igualmente suspeita.

Ao longo dos últimos 50 anos, muitos esforços foram feitos pelos criadores, organizações e produtores culturais mundiais em contraposição à hegemonia dos agentes econômicos e dos monopólios multinacionais da cultura e da comunicação, que verticalizam e dominam a criação, a difusão e a distribuição de bens culturais em todo o planeta, bem como nos mercados locais. Iniciativas da UNESCO, como o Relatório Mac Bride (1980) e a Convenção Universal pela Diversidade Cultural (2005), ambos aprovados pelo Brasil, aliás, não apenas denunciaram essa monopolização mundial da Cultura, como propuseram medidas político-econômicas concretas para sua superação. Merecem, por isso, ser melhor estudadas, o que pretendemos fazer proximamente. Mas o fato é que tornaram-se quase letra morta e, por enquanto, mesmo com o advento do mundo digital (e principalmente em razão dele), o poder econômico dos monopólios e da mídia continua sobrepujando o talento, a criatividade e o saber: se, além do anti-intelectualismo, o desmonte da Educação se dá pela asfixia econômica e limitação da autonomia das universidades e instituições de ensino, o desmonte da Cultura se dá também pelo recrudescimento da censura (inclusive a econômica), pelo preconceito contra os criadores e suas organizações e pelo elogio da ignorância, hoje acrescido, no Brasil de Bolsonaro, de um alto teor de truculência e boçalidade.

É esse quadro que o pouco esclarecido ministro Weintraub tenta impor ao Brasil como projeto de futuro para a Educação e a Cultura. Só que, irônica e acacianamente, a única certeza que temos sobre esse futuro é a de que dentro de uns 100 anos, mais ou menos, estaremos todos mortos. Antes disso, porém, pelo andar da carruagem, a Cultura brasileira já terá sucumbido, dizimada pela brutalidade inepta dos governantes botocudos aliados aos agentes da dominação econômica, os verdadeiros exterminadores do futuro.

Rejeitemos esse futuro fajuto que tentam nos impor, que é um filme no qual todos morremos no fim. Se olharmos para trás, veremos que a glória e o apogeu de nossa Educação e nossa Cultura ligam-se a nomes como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Mário de Andrade, Villa-Lobos e tantos outros que, do passado, apontam para o futuro que verdadeiramente queremos e merecemos.

Portanto, a dignidade nacional lembra que a palavra de ordem atual deve ser uma só:

PASSADE-SE!

Marcus Vinicius de Andrade
FUNDAÇÃO INSTITUTO CLAUDIO CAMPOS

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