Intervenção na Venezuela: A quem serve a indicação de general brasileiro para o Comando Sul do Departamento de Defesa dos EUA?
Publicado 26/02/2019 - Atualizado 26/02/2019
A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados apresentou Requerimentos de Informação aos Ministros da Defesa e das Relações Exteriores,no último dia 19 de fevereiro, sobre a indicação de um general brasileiro para assumir cargo de subcomandante no Comando Sul do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (ver os requerimentos aqui e aqui).Trata-se de uma indicação inédita, em sua vergonhosa submissão a Washington: desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não tinha integrantes de suas Forças Armadas integrados à estrutura operacional de tropas estrangeiras (situação distinta daquela que ocorre na atuação sob a bandeira da ONU).
O requerimento de informação indagou, em especial, se o Brasil participaria de eventual intervenção militar na Venezuela, ainda que a título de “ajuda humanitária”. Como se sabe, a atual tática de desestabilização e intervenção conduzida por Washington procura usar essa fachada. Segundo destacou o Comitê Internacional Cruz Vermelha (ver aqui),entretanto, não se trata de ajuda humanitária, porque não há atendimento aos pressupostos de imparcialidade e neutralidade.
A bancada do PSOL também indaga, entre as 17 perguntas apresentadas aos dois Ministérios: “mesmo que o general brasileiro não tenha envolvimento direto com uma eventual intervenção militar na Venezuela, este Ministério não se preocupa que a sua presença na estrutura do Comando Sul contribua para conferir um verniz de legitimidade à intervenção, ainda que seja ilegal perante o direito internacional, e contrária à Política Nacional de Defesa do Brasil, que “repudia qualquer intervenção na soberania dos Estados e defende que qualquer ação nesse sentido seja realizada de acordo com os ditames do ordenamento jurídico internacional”?
A respeito da Venezuela, o requerimento questiona, por fim, se o envio da “ajuda humanitária” poderá ser feito a partir do território brasileiro, e se há alguma chance de que o corredor de envio da “ajuda” atravesse ou impacte a terra indígena Raposa Serra do Sol, na fronteira entre Brasil e Venezuela. Um general venezuelano aliado de Juan Guaidó defendeu, há alguns dias, essa possibilidade.
É oportuno lembrar que a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol contrariou a cúpula do Exército. O general Heleno,particularmente, atual Ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, foi um dos críticos públicos da demarcação (ver aqui),que Jair Bolsonaro prometeu rever. Além de desastrosa no plano da política externa, portanto, há o risco de que a criação decorredor de envio da falsa “ajuda externa” à Venezuela, a partir do Brasil, sirva à militarização de terras indígenas, por sua vez à serviço da ampliação das atividades de mineração e expansão da fronteira agropecuária na Amazônia, invadindo os territórios dos povos originários do nosso país.
O Brasil de joelhos para os Estados Unidos
Na justificativa do requerimento de informação, os deputados e deputadas do PSOL argumentam que a indicação de um general brasileiro para integrar o Comando Sul do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (“United States Southern Command”)significa uma violenta ruptura com a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional,documentos com força de lei, aprovados pelo Congresso Nacional.Viola, ademais, princípios estabelecidos pela Constituição de 1988e pelas tradições diplomáticas brasileiras, de primar pela soberania nacional, integração latino-americana e sul-americana,independência na construção das políticas exterior e de defesa, e inserção internacional sob a égide do multilateralismo.
A Política Nacional de Defesa estabelece que o Brasil deve “apoiar o multilateralismo no âmbito das relações internacionais”, e“atuar sob a égide de organismos internacionais, visando à legitimidade e ao respaldo jurídico internacional, e conforme os compromissos assumidos em convenções, tratados e acordos internacionais”. A Estratégia Nacional de Defesa estabelece, entre as ações estratégicas de defesa, “estimular o desenvolvimento de uma identidade sul-americana de defesa”, “intensificar as parcerias estratégicas, a cooperação e o intercâmbio militar comas Forças Armadas dos países da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL)”, e “incrementar a participação brasileira no Conselho de Defesa Sul-Americano – CDS/UNASUL”. Em suma, os dois documentos, bem como o Livro Branco de Defesa Nacional, reafirmam que a inserção internacional do Brasil deve ocorrer segundo os marcos do multilateralismo e das organizações internacionais, e priorizar o fortalecimento da integração da América do Sul e da América Latina.
Não podemos aceitar que um general brasileiro assuma um cargo operacional de “vice-comandante” na estrutura das Forças Armadas dos Estados Unidos, submetendo-se à cadeia de comando desse país.Não há qualquer razão que justifique essa submissão, a não ser o afã entreguista do atual governo, articulado com as pretensões imperialistas dos norte-americanos, que têm feito abertas ameaças de intervenção militar na nossa região. O peso geopolítico e econômico do Brasil na América do Sul deve ser utilizado em favor da pacificação e integração da região, e não a mais um golpe dirigido pela Casa Branca em nosso continente.
A atuação dos Estados Unidos na América Latina não tem em vista a promoção de quaisquer causas “humanitárias”, mas a persecução dos interesses econômicos e geopolíticos daquele país – em muitos casos, frontalmente conflitante com os interesses brasileiros.Essa obviedade é explicitada pela nova “estratégia de segurança nacional”1 estadunidense, divulgada em 2017. O documento é claro ao assumir que os norte-americanos agem no mundo orientados por seu próprio interesse nacional, visando a ampliar seu poder global, suas“posições de força” e seus recursos econômicos. Para tanto,deverão também, segundo o texto, reduzir o poder de seus inimigos geopolíticos e concorrentes geoeconômicos, e sancioná-los com eficácia. O documento identifica a China e a Rússia entre os principais rivais dos EUA, por se proporem a modificar a hierarquia da “ordem mundial”, reduzindo o poder global dos norte-americanos.
O Comando Sul está subordinado a essas definições, à busca do interesse nacional estadunidense, à ampliação de seu poder global e de suas posições de força. A estratégia do Comando Sul para o período 2017-20272identifica claramente o propósito de se contrapor ao crescimento da presença da China e da Rússia na América Latina, uma vez que os interesses desses países podem ser incompatíveis com os norte-americanos, e porque procuram impulsionar uma “ordem internacional alternativa” àquela hegemonizada pelos Estados Unidos. Os interesses dos EUA na Venezuela estão vinculados justamente às enormes reservas petrolíferas desse país, bem como outros recursos minerais, bem como às alianças que estabeleceu com China e, em especial, Rússia. Não têm qualquer relação com preocupação “humanitária”, nem com liberdades ou democracia –dispensável dizer o longo histórico dos EUA de promoção de golpes que instauraram ditaduras em nossa região, além das alianças que mantêm até hoje com diversos regimes autoritários, a exemplo da Arábia Saudita.
Segundo assinalou o ex-Ministro Celso Amorim3,o Comando Sul tem procurado absorver, sob o seu comando, as Forças Armadas dos diversos países da América Latina, como se fossem todos departamentos militares dos EUA, vinculados à promoção de seus interesses – notadamente, à disputa econômica e geopolítica que travam com a China.
Nosso Exército, Marinha e Aeronáutica não podem ser reduzidos amero departamento operacional das Forças Armadas estadunidenses,para a consecução dos interesses desse país e da ampliação de seu poder na América Latina. Não cabe ao Brasil fazer-se instrumento da política exterior nem dos Estados Unidos, nem da China, mas dialogar e negociar com todos, de modo altivo e independente, forjando laços, em especial, com “os povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, segundo prescreve nossa Constituição.
Notas
1 Vide abalizada análise do professor José Luis Fiori: “Nova estratégia americana”, artigo publicado no Jornal do Brasil, em 4 de março de 2018. Disponível em: http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/nova-estrategia-americana-%E2%8E%AE-jose-luis-fiori/
2 “United States Southern Command – 2017-2027 Theater Strategy”. Documento disponível em: https://www.southcom.mil/Portals/7/Documents/USSOUTHCOM_Theater_Strategy_Final.pdf?ver=2017-05-19-120652-483.
3 Vídeo para o site “Nocaute”, em 16 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eSM-nNsu0-4&.