Dois anos de restrições democráticas e violações de direitos

Após dois anos de governo, o presidente Jair Bolsonaro já deixou claro –para quem ainda tinha alguma dúvida – que suas declarações como deputado federal e candidato desprezando direitos civis, fazendo apologia à ditadura militar e a torturadores, e seu desprezo pela vida não eram apenas retórica eleitoral.

Bolsonaro,   seus aliados e seguidores saudosistas dos momentos mais autoritários da história do país rasgam cotidianamente a Constituição, as leis brasileiras e tratados internacionais para impor sua política de ataque aos direitos fundamentais, perseguições, censura e recrudescimento do papel das forças de segurança como aparato de repressão social.

Os traços autoritários do governo não se limitam às declarações absurdas do presidente, ministros e aliados. Elas se refletem em medidas políticas e administrativas (projetos de lei, medidas provisórias, decretos) que criam um grave ambiente de estímulo à  violência, rompem com a harmonia entre os três poderes e criam um cenário de grave crise institucional.

Várias iniciativas do seu governo se inscrevem num cenário de tentativa de aumentar os poderes do Executivo para perseguir organizações sociais e calar opositores. Exemplo disso foi a manifestação do presidente de que pretendia decretar estado de sítio para ampliar os poderes do Executivo e tentar impedir que governadores e prefeitos decretarem o fechamento de atividades econômicas em razão da pandemia. Como sua manifestação encontrou forte resistência em diversos campos políticos e jurídicos, Bolsonaro busca a via parlamentar para ampliar seu poder: deputado Vitor Hugo (PSL-GO),protocolou o Projeto de Lei 1074/21, para permitir a decretação da Mobilização Nacional a que se referem os incisos XXVIII do artigo22 e XIX do art. 84 da Constituição Federal, nos casos de situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente de pandemia e de catástrofe natural de grandes proporções.

É um governo que persegue professores, jornalistas, comunicadores sociais e organizações da sociedade civil. Ataca de forma deliberada as universidades, a imprensa e os instrumentos de participação social. Estimula a violência simbólica e mesmo física, ao colocar como eixo central da ação do governo a adoção de medidas para liberar o uso de armas e munição, e patrocinar projetos de lei para ampliar a criminalização de movimentos sociais.

Liberação de armas e munições

De acordo com levantamento do Instituto Sou da Paz, desde que tomou posse, o governo Bolsonaro já publicou 31 atos normativos do Poder Executivo e dois projetos de lei enviados ao Congresso Nacional, como objetivo de ampliar e legalizar o uso de armas pela população.

Em15 de janeiro de 2019, o Decreto nº 9.685/2019 inaugurou a série de14 decretos, 15 portarias, uma resolução do Ministério da Economia e uma Instrução Normativa da Polícia Federal que desestruturam toda a política de controle de armas aprovada em 2003 pelo Estatuto do Desarmamento.

Nenhuma dessas mudanças foi discutida pela sociedade. Foram medidas unilaterais que não contaram sequer com debate no Poder Legislativo.

O objetivo de Bolsonaro é aumentar o acesso e reduzir as formas de controle e marcação de armas e munições, sem as quais as forças de segurança pública ficam sem os instrumentos necessários para rastrear armas utilizadas pelo tráfico de drogas e em crimes de toda a natureza. Além disso, toda essa facilitação parece estar a serviço da constituição de milícias e estruturas paramilitares,coincidentemente alimentando os setores que apoiam as políticas do atual governo.

As medidas de Bolsonaro neste campo resultaram no alarmante dado de mais de 1,1 milhão de armas em posse da população civil no final de2020, representando um aumento de 65% se comparado com o final de2018. A Taurus, uma das principais fabricantes de armas do mundo,aumentou seu lucro líquido no Brasil em escandalosos 507%.

Aparato de repressão

Em2021, Jair Bolsonaro retomou a ofensiva persecutória através de projetos de lei para alterar a Lei Antiterrorismo. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), autorizou a criação de uma comissão especial sobre o tema. O debate se dará em torno do projeto de lei de autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), PL1595/2019, que altera a legislação antiterrorismo de 1999, 2001 e a Lei Antiterrorismo 13.260/ 2016 aumentando hipóteses dos atos tipificados como terrorismo, permitindo punir “atos preparatórios”,estabelecendo que ações contraterroristas possam ser consideradas“hipóteses de excludente de ilicitude”. Além disso, abre espaço para infiltração de agentes públicos e para “técnicas operacionais sigilosas”. Esse projeto estava parado na Câmara dos Deputados, mas depois da eleição de Artur Lira para a presidência,entrou na pauta como item de prioridade.

Vale ressaltar que essa proposta é uma modificação de um projeto de lei elaborado pelo próprio Vitor Hugo quando ele ocupava função de consultor legislativo, e esse projeto chegou a ser apresentado pelo então deputado Jair Bolsonaro, mas foi arquivado na nova legislatura.

Organizações de direitos humanos e da sociedade civil alertaram, em carta pedindo a não instalação da Comissão Especial, que  “OPL 1595/19 é parte de uma lista extensa de projetos que têm como pretexto o fomento de novas modalidades de controle da sociedade eque tem por objetivo criminalizar a atuação de lideranças,movimentos de base e organizações da sociedade civil. Se aprovados,trarão enormes retrocessos e prejuízos ao espaço democrático em nosso país. Por essas razões, é ainda mais preocupante que sejam discutidos e negociados sem um debate público plural e amplo com todos os setores interessados”.

Violações à liberdade de expressão e perseguição a jornalistas e comunicadores

O governo Bolsonaro adotou como diretriz básica a institucionalização das violações à liberdade de expressão e manifestação, tentando impedir que opiniões e ideias divergentes sejam expressas na esfera pública.

Em relatório divulgado no início de 2021 sobre Violência contra jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) mostra que o ano de 2020 foi o mais violento para o exercício do jornalismo desde o começo da década de 1990,quando a entidade sindical iniciou a série histórica. Foram 428casos de ataques – incluindo dois assassinatos – o que representa um aumento de 105,77% em relação a 2019, ano em que também houve crescimento das violações à liberdade de imprensa no país.

Entre as violações e ataques monitorados estão afirmações para atacara credibilidade da imprensa: foram 152 casos, o que representa 35,51%do total de 428 registros ao longo de 2020. Bolsonaro é o principal porta voz desse tipo de agressão. Dos 152 casos, o presidente da República foi responsável por 142 episódios.

Sozinho, Jair Bolsonaro respondeu por 175 registros de violência contra a categoria (40,89% do total de 428 casos): 145 ataques genéricos e generalizados a veículos de comunicação e a jornalistas, 26 casos de agressões verbais, um de ameaça direta a jornalistas, uma ameaça à Globo e dois ataques à própria Federação Nacional dos Jornalistas.

Também foi registrado aumento nos casos de Agressões verbais e ataques virtuais, com o crescimento de 280% em 2020 em comparação com o ano anterior, quando foram registrados 76 casos. Houve aumento expressivode censuras (750% a mais) e agressões verbais/ataques virtuais (280%a mais).

O governo também tem utilizado a Lei de Segurança Nacional para criminalizar e perseguir manifestantes e comunicadores. De acordo com nota publicada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, apenas em2021, segundo a Polícia Federal, 51 investigações foram iniciadas por suposta infração à lei – número que representa mais do que a soma dos dois anos anteriores (45). “No último mês, assistimos com preocupação a escalada do assédio judicial a cidadãos que manifestaram suas críticas ao presidente da República, Jair Bolsonaro. Em comum, o uso da Lei de Segurança Nacional paraperseguir e silenciar opositores do governo, e até mesmo tentarsilenciar faixas e outdoors pelo país, além de constranger agentespúblicos, compelindo-os à execução de persecuções criminaisinfundadas”, afirma o conselho.

Em carta deste Observatório da Democracia, divulgada em alusão os 57 anos do golpe militar, as Fundações Partidárias apontam a necessidade derevogação da LSN, entulho autoritário que não tem compatibilidade com as diretrizes democráticas da nossa Constituição Federal. Anota reforça que a Lei tem sido acionada pelo presidente Bolsonaro para criminalizar manifestações desfavoráveis a ele. O uso e abuso desses dispositivos por Bolsonaro denota seu espírito autoritário, incompatível com a liberdade de expressão e opinião garantida na nossa Carta Magna. Os partidos [PT, PCdoB e PSol que ingressaram no STF com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre o tema) também questionam a competência atribuída pela Lei de Segurança Nacional à Justiça Militar e às autoridades militares para processarem e julgarem cidadãos civis em razão do suposto cometimento dos crimes previstos na LSN que não possuem enquadramento na Constituição Cidadã”, como foi o caso da abertura de processo contra o Youtuber Felipe Neto e a prisão de manifestantes em Brasília e Minas Gerais.

Por estas e outras violações à liberdade de expressão e à democracia, Jair Bolsonaro tem sido denunciado por diversas organizações da sociedade civil para órgãos de direitos humanos nacionais e internacionais.

Até mesmo o Departamento de Estado Americano em relatório sobre direitos humanos, mostra preocupação com o cenário do Brasil diante deinúmeros retrocessos em relação aos ataques à imprensa; pelo decreto assinado por ele para políticas de ensino a crianças com deficiência; e pelas ações adotadas pelo governo federal contra a Covid-19 às comunidades indígenas. O texto também destaca a violência policial no Brasil eas mortes arbitrárias cometidas pela corporação.

O Departamento de Estado pontua que, entre as questões significativas em relação aos direitos humanos no Brasil, estão os relatos de assassinatos arbitrários cometidos pela polícia. O relatório americano se baseia nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que indica que, em 2019, 5.804 civis foram mortos pela corporação.

Entre os mortos, segundo diz o texto, estão suspeitos de crimes, civis e narcotraficantes que atentavam contra a polícia. No entanto, o documento completa que “a extensão das mortes ilegais é difícil de determinar”. “Membros das forças de segurança cometeram vários abusos”, afirma.

O relatório também ressalta que, ainda que os agentes que cometeram os crimes sejam denunciados, o país tem um problema de impunidade e de falta de responsabilização das forças de segurança. “Processos judiciais ineficazes às vezes atrasam a justiça para os infratores assim como para as vítimas”, completa.

Porfim, o relatório também fala sobre a violência com motivação política no Brasil. Com dados da ONG Terra de Direitos e a Justiça Global, o documento aponta que, até 1º de setembro do ano passado,27 políticos e candidatos foram mortos ou agredidos — no ano anterior, o número de casos era 32.

Fundação Maurício Grabois
Observatório da Democracia

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