Dois anos de desgoverno Bolsonaro – acelerando o desmonte

O bolsonarismo na economia

A agenda econômica do governo Bolsonaro tem como objetivo acelerar a
destruição do Estado através da venda de seu patrimônio, da redução dos direitos sociais e da desregulamentação de diversos ramos de atividades, apostando numa versão arcaica do neoliberalismo. Paulo Guedes é a personificação dessa agenda que se mostra completamente descolada da realidade nacional e global,estacionada que está em uma ideologia ultrapassada desde a década de 1970.

No entanto, o que caracteriza a agenda econômica do bolsonarismo é a mistura desse neoliberalismo arcaico com o patrimonialismo e corporativismo de alguns setores da sociedade brasileira, que dominaram quase todos os postos do Estado brasileiro. Enquanto a maioria dos trabalhadores observa inerte a destruição de seus direitos sociais e trabalhistas, algumas corporações e setores econômicos aproveitam sua proximidade com o governo para obter benesses fiscais e regulatórias,

O resultado preliminar dessa mistura tem se mostrado um verdadeiro fracasso. Em 2019, contando com amplo apoio empresarial e midiático,a agenda Bolsonaro/Guedes foi incapaz de fazer o Brasil retomar o rumo do crescimento econômico. O primeiro ano de governo Bolsonaro foi marcado por um crescimento econômico inferior ao último ano do governo Temer, levando ao aprofundamento da crise no mercado de trabalho e uma nova rodada de deterioração da estrutura produtiva.A resolução dos problemas fiscais foi apenas mais uma entre as diversas promessas que se viram postergadas indefinidamente.

Em 2020, diante da maior crise sanitária da história recente do capitalismo global, o negacionismo e a inação do governo Bolsonaro foram responsáveis por milhares de mortes e pela profunda crise que se abateu sobre a economia brasileira. Os únicos fatores capazes de mitigar a debacle econômica tiveram origem na pressão da sociedade e da oposição no parlamento, capazes de viabilizar o auxílio emergencial no valor de R$ 600 e uma série de programas de suporte a atividade econômica, através da aprovação do “orçamento de guerra”. Inicialmente o governo não apenas negava a pandemia, como minimizava seus efeitos econômicos, afirmando que com poucos milhões de reais seria capaz de “acabar com a COVID”.

No início de 2021, em mais uma atitude irresponsável e criminosa, o governo encerrou todas as medidas de suporte econômico em meio a insurgente segunda onda da pandemia, mais veloz e letal que a primeira. Ao negar a extensão do estado de calamidade, o governo retomou o teto de gastos e deixou de pagar novas parcelas do auxílio emergencial, encerrando também todos os gastos extra com saúde,apoio a estados e municípios, suporte a pequenas e micro empresas e programas de manutenção do emprego formal.

Em desespero diante da acelerada deterioração sanitária, econômica e social observada nos primeiros meses de 2021, o governo condicionou a recriação de um diminuto auxílio emergencial a aprovação de uma nova regra fiscal capaz de acelerar a destruição do Estado no longo prazo. Enquanto chantageava a sociedade, a inflação seguia crescendo na esteira do aumento do preço de alimentos, combustíveis e gás natural, ao mesmo tempo que a renda das famílias desabava diante do desemprego, desalento e fim do auxílio.

O crescimento no ritmo de mortes causada pela COVID-19 e suas variantes, além de uma tragédia humanitária que afeta direta e indiretamente milhões de famílias no Brasil, levará o país de volta a recessão econômica no primeiro semestre de 2021. As pequenas e médias empresas sucumbirão com a absoluta falta de medidas de suporte de crédito e renda, reforçando o desemprego, o desalento e pobreza. É neste cenário de caos sanitário, econômico e social que o governo Bolsonaro encerra seu primeiro biênio, sem indicar nenhuma proposta concreta para saída dessas crises conjugadas.

I – O desmonte na proteção social e no mercado de trabalho

O Governo Bolsonaro está marcado por duas crises no mercado de trabalho, que se acumularam. A primeira consiste no salto estrutural do desemprego durante a crise de 2015, que foi erroneamente combatido com a Reforma Trabalhista promovida pelo Golpe de 2016. A desorganização do Estado de Bem-estar levou à perda do tecido social gerado pelas políticas públicas capazes de diminuir apressão sobre o mercado de trabalho, especialmente entre os jovens.No desespero de sustentar a família para além dos chefes, que estão desempregados e sem mais o acesso aos serviços públicos, o mercado de trabalho está inchado pela falta de perspectiva dos seus participantes. Completou essa primeira onda o aumento da população estrutural de desempregados.

Em mais de vinte anos desde o Plano Real, a população absoluta de desempregados oscilou entre 4 a 9 milhões de pessoas; este número saltou para próximo de 14 milhões em 2020 e mantêm-se perigosamente estável, com um grande potencial de crescimento para   acelerado pandêmico de 2021. O novo contingente de desempregados no Brasil demanda políticas públicas e programas políticos distintos, pois cresce a dinâmica própria da vida para o desemprego de parte expressiva da população economicamente ativa,uma porta de entrada irresistível às formas precárias e à superexploração do trabalho. Ademais, o peso dos trabalhadores ocupados nas formas tipicamente protegidas (Servidores Públicos,Empregadores e Trabalhadores com Carteira) do mercado de trabalho reduziu-se mais de 3 p.p. desde 2016, formando em 2020 52,5% da população ocupada, enquanto a população desprotegida (Conta-própria, Trabalhadores sem Carteira e em regime familiar) do mercado de trabalho aumentou para 47,5%.

A segunda crise do trabalho é bastante peculiar e iniciou-se em 2020. Esta é caracterizada pelo mecanismo perverso de encurtamento do mercado de trabalho como resultado da forma como o combate à Pandemia foi encaminhada pelo Governo Bolsonaro. Sem uma política clara desde o início sobre a defesa da quarentena para todos os brasileiros e a busca de meios materiais para viabilizá-las, os trabalhadores brasileiros, tipicamente dualizados entre setores formal e informal, viram seus postos de trabalho em serviços não essenciais desaparecerem com as medidas sanitárias corretamente adotadas pelos governadores, sem um conjunto de medidas protetivas dos postos de trabalho por parte do governo federal. A hesitação e dúvida – tanto sobre o Auxílio Emergencial para trabalhadores informais, que somente seria sancionado em 1º de abril de 2020, transcorrido mais de um mês de pandemia, quanto sobre o sistema de proteção necessário ao mundo formal de trabalho – deterioraram as condições laborais da economia, expulsando mais de 10 milhões de pessoas do mercado de trabalho em poucos meses, resultando em variações de -5,9% para amassa salarial, -8,5% de redução na população economicamente ativa e -9,6% na população ocupada no trimestre entre abril e junho, ápice da primeira onda do Coronavírus no país.

Há uma pequena reversão desse quadro no  terceiro trimestre de 2020, mas ainda não foi capaz de recuperar o quadro geral de desestruturação do mercado de trabalho. Há situação inédita no Brasil em que mais da metade da população em idade ativa está ou fora do mercado de trabalho ou desempregada. O efeito da perda de renda e aumento da desigualdade consequente disso só não foi tão agudo devido ao amortecimento promovido pelos auxílios aos setores formais e informais da economia, no entanto, o problema demográfico está dado, que pode ser explosivo à medida em que as medidas de sustentação emergencial da renda do trabalho sejam retiradas abruptamente sem que a Pandemia se tenha resolvido.

Os efeitos conjunturais dessa crise gêmea no mercado de trabalho vão provocar consequências estruturais na sociedade brasileira extremamente negativas. Há uma “geração COVID” em gestação no Brasil, formada pelos jovens no mercado de trabalho que serão duramente afetados pela desestruturação dos empregos formais durante e na saída da Pandemia e pelas crianças e jovens em idade escolar duramente afetadas pelo bloqueio intempestivo da renda do trabalho das famílias, combinado com o sucateamento da máquina pública, em especial na oferta de educação de qualidade.Os investimentos por aluno têm caído brutalmente desde a mudança forçada de paradigma de desenvolvimento para o fiscalismo potencializado pelo Teto de Gastos; em 2020, no meio da crise sanitária e humanitária, o Ministério da Educação cortou ainda mais 10,2% o orçamento para investimentos da pasta. Ademais, a incapacidade de o Governo Bolsonaro em oferecer uma saída racional para a interrupção das aulas no sistema público penalizaram muito mais os estudantes pobres, não apenas na questão do aprendizado,mas também no acesso à alimentação, muito importante por meio das merendas escolares. Durante o período de refração da primeira onda de contágio, a abertura de serviços privados, como bares e restaurante, foi priorizada em relação às escolas públicas,muitas delas estão ainda fechadas passados mais de um ano de Pandemia. Os efeitos colaterais dessa estratégia serão devastadores para o futuro do Brasil.

II – O desmonte nas empresas públicas e na estrutura produtiva.

Do ponto de vista da estrutura produtiva, o baixo dinamismo da economia brasileira desde durante o governo Bolsonaro, afetando a dinâmica do mercado interno, tem sido uma das principais variáveis responsáveis pelo fechamento de grandes empresas em setores estratégicos, acelerando mais ainda o processo precoce de desindustrialização no Brasil. A participação da indústria de transformação no PIB  caiu de 12,3% em 2018 para 11,3% em 2020.

Entre 2018 e 2020, mais de 14 multinacionais deixaram o país pela falta decrescimento econômico e a falta de perspectiva de retomada. Em média, desde 2018, uma estrangeira desistiu do país num intervalo de menos de três meses1. Com a crise, duas dimensões do enfraquecimento da estrutura produtiva chamam a atenção:

  1. O desmonte das estatais, com as privatizações e a estratégia de aditivos e subsidiárias serem liquidadas para fragilizar o poder produtivo e o tamanho dessas estatais para serem definitivamente privatizadas2. Já foram 15 empresas vendidas, e um caso que chama a atenção é o desmonte da cadeia de refino relacionado a Petrobras, com a empresa perdendo a capacidade de processamento do petróleo nacional aos seus custos de produção, tirando as possibilidades da Petrobras administrar sua política de preço. Com a privatização das refinarias e a política de Paridade de Preços de Importação (PPI), a sociedade brasileira paga um preço alto com o aumento constante dos combustíveis e do gás.
  2. O governo Bolsonaro também tem adotado uma forte política de redução do investimento no complexo econômico industrial da saúde no Brasil, em particular nos laboratórios públicos e que fica em evidência com a crise da Covid-19. A Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (Alfob) apresentou estudo onde mostra que além da redução de investimentos, o Ministério da Saúde rompeu Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) com sete laboratórios públicos nacionais, o que suspendeu a produção de alguns medicamentos como Sofosbuvir e Vacina Tetraviral, entre outros. Na época, a Alfob previu a perda anual de, pelo menos, R$ 1 bilhão para o setor e já apontava os riscos de desabastecimento3. Essa medida enfraqueceu mais ainda a estrutura produtiva do complexo industrial da saúde no Brasil, levando o país a uma maior dependência de insumos importados. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abifiqui), somente 5% dos insumos utilizados pela indústria farmacêutica para a produção de remédios prontos são produzidos no Brasil — o outros 95% são importados4.

III – A macroeconomia do desmonte: arrocho fiscal e inflação.

A condução da política macroeconômica na primeira metade do governo Bolsonaro foi marcada pelo arrocho fiscal, pela queda da taxa básica de juros acompanhada da redução do crédito público,   instabilidade e desvalorização cambial.

Desde o início, o governo manteve o discurso da austeridade fiscal e da defesa da redução da intervenção do Estado na economia. Assim,no primeiro ano do mandato aprovou a reforma da Previdência e enviou ao Congresso PECs que desobrigam, desindexam e desvinculam gastos públicos que garantem a efetivação de direitos sociais,viabilizando sua redução estrutural. Não quis e, ajudado pela incompetência de parte das equipes que assumiram o comando dos órgãos, não conseguiu gastar, apesar da necessidade de estimular a economia estagnada. Assim, as despesas primárias ficaram R$34bilhões abaixo do valor permitido pelo Teto de Gastos, já muito restritivo, e o déficit primário foi R$44 bilhões menor que o da meta prevista na LDO. O arrocho levou o governo a reduzir os recursos para políticas públicas importantes, como a manutenção de estoques reguladores de grãos para manter o abastecimento interno apreços minimamente estáveis, e a manter os investimentos   níveis historicamente baixos, pouco acima da metade dos de 2014.Funcional ao desmonte da capacidade de ação estatal, o subfinanciamento tem sido uma escolha.

O governo iniciou o segundo ano disposto a mantê-la, adotando a austeridade no discurso e na prática ao não conceder reajuste realdo salário mínimo. Contudo, com o impacto da pandemia de Covid-19,se viu obrigado a adotar medidas de mitigação. A mais notória delas, o auxílio emergencial, foi adotada de forma tardia, e somente alcançou o volume necessário graças à derrota do governo no Congresso. A lentidão e o acanhamento marcaram a maioria das demais medidas adotadas, em linha com a obsessão com o arrocho explicitada,por exemplo, no fato de que praticamente nenhuma medida teve o prazo estendido para 2021 apesar das fortíssimas evidências de que os efeitos da pandemia sobre a saúde pública se prolongariam, o que acabou acontecendo.

O Banco Central praticou no período uma política de redução da taxa básica de juros compatível com o marasmo da economia. Ela foi,todavia, torpedeada pela deliberada redução da ação dos bancos públicos no financiamento da atividade e do investimento. O melhor exemplo disso é dado pelo BNDES, que em 2019 devolveu de forma antecipada R$100 bilhões que havia tomado emprestado junto ao Tesouro, reduzindo sua capacidade de atuação. Não surpreende que o investimento naquele ano tenha ficado praticamente no mesmo nível baixo dos anos anteriores, antes de despencar em 2020 com a pandemia.A taxa de câmbio, por sua vez, tem registrado violentas flutuações e, em 2020, sofreu desvalorização de mais de 30% em relação ao dólar, a maior entre as moedas das principais economias emergentes,na esteira da desconfiança no exterior quanto à capacidade do governo de tomar as medidas necessárias para evitar o descontrole da pandemia e para organizar a retomada da economia.

 Impulsionada principalmente por essa forte desvalorização, a inflação no país recentemente acelerou, em especial a que afeta os mais pobres. Assim, enquanto o IPCA geral fechou 2020 em 4,52%, o IPCA referente à alimentação em domicílio foi quatro vezes maior.Com níveis historicamente elevados de desemprego e salários estagnados, as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores aumentam.

 Transcorrida a metade do mandato de Bolsonaro, não há nenhum indicativo de retomada do crescimento econômico. A ideia de que a austeridade levaria ao aumento da confiança dos investidores e, comisso, dos investimentos, impulsionando o crescimento, não se mostrou correta. Ao contrário, o primeiro trimestre de 2021 deve voltar a registrar a queda do produto. O horizonte não se mostra favorável.

Conclusão: o preço do fracasso

A economia brasileira chega profundamente enfraquecida ao final do primeiro biênio do governo Bolsonaro. Hoje, somos apenas a décima segunda maior economia global, quando nos governos Lula já chegamos a ser sexta. Voltamos a ser assolados pela miséria, pela fome e pela absoluta ausência de oportunidades de trabalho digno para milhões de brasileiros.

As reformas liberais não apenas fracassaram em seu intuito de promover o crescimento, como fragilizaram a situação dos trabalhadores e das famílias, assoladas pelo desemprego e por um mercado de trabalho que não gera boas oportunidades. As pequenas e médias empresas fecham suas portas aos milhares devido a absoluta ausência de apoio durante a pandemia. A inflação sobe e os resultados fiscais se deterioram na esteira da depressão econômica.Apenas uma nova agenda de desenvolvimento econômico e social será capaz de retirar o Brasil do abismo que o bolsonarismo nos colocou.

Fundação Perseu Abramo
Observatório da Democracia

1 Ver: https://oglobo.globo.com/economia/pais-perdeu-uma-multinacional-cada-tres-meses-desde-2018-da-industria-ao-varejo-24842415

2 Algumas estatais que já foram vendidas: Correiospar; BR Distribuidora; Stratura Asfaltos; BB Turismo; TAG (Transportadora Associada de Gás S.A); Logigás; ETN (Extremoz Trasmissora de Energia S/A); Estratura Asfaltos; Liquigás; e-Petro; Eletrosul; Conecta; RLAM; DGM (Distribuidora de Gás Montevideo S/A); PUDSA (Petrobras Uruguay Distribuición S/A) ; Ceitec (Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada).

3 Ver: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1243-reducao-de-investimentos-publicos-em-laboratorios-nacionais-dificultam-acoes-para-combater-covid-19

4 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55134246