Crise sanitária e crise econômica: o mundo em convulsão
Publicado 09/04/2020
Não há dúvida que décadas de políticas neoliberais levaram ao enfraquecimento e / ou ao desmantelamento das políticas sociais, especialmente no campo da saúde. Esse processo, no entanto, não foi homogêneo no mundo, havendo países onde a saúde pública, por mais que tenha sofrido ataques de todos os tipos, geralmente no tocante ao financiamento e a sua gestão, continuou a se manter como referência. Estou me referindo ao Serviço Nacional de Saúde (National Health Services – NHS), na Inglaterra, e ao Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil. De qualquer maneira, o avanço do novo coronavírus não deu opção aos estados, por mais neoliberais que tenham sido seus governos nos últimos 30, 40 anos. Uns mais tarde do que outros, tiveram que tomar para si a luta contra o avanço da doença, centralizando em seu Ministério da Saúde as informações relativas aos recursos disponíveis tanto no setor público como no setor privado (de leitos, materiais, equipamentos e pessoal da área da saúde), planejando sua ampliação mediante compra, reconversão de indústrias e construção de hospitais de campanha; conclamando os aposentados e mesmos os estudantes de medicina a virem ajudar na luta contra a pandemia.
E em todos os países, os profissionais da área da saúde, que não têm tido descanso nessa luta, são saudados por sua população agradecida. É uma triste ironia, mas passará à história o fato de uma pandemia ter ressignificado o papel e o lugar do servidor público, principalmente os mais diretamente comprometidos no combate ao covid-19.
O impacto dessa pandemia sobre a economia mundial será avassalador, mas certamente maior para os países que não fazem parte do grupo dos mais “desenvolvidos”. É preciso lembrar que esta é a primeira pandemia que ocorre em um mundo onde o capital se faz presente em todos os lugares (a chamada globalização), onde as interconexões são inúmeras, tal como um tecido de N fios, e com um alto grau de especialização ou concentração de atividades em alguns países. A pandemia, ao exigir a paralisação das atividades, acabou afetando o mundo inteiro, mesmo antes de ela se fazer presente em todos os países. No plano local, dos estados nacionais, a paralisação parcial ou total das atividades (não considerando as essenciais), atuou (e ainda atua) como um segundo choque, destruindo empregos e renda, desfazendo os laços contínuos de que se vale o mercado, nas relações entre empresas, bancos e famílias. Há quem considere que o impacto sobre a economia será comparável à crise dos anos 1930. Mesmo que assim não seja, certamente será pior do que a crise dos anos 2007/2008, por sua profundidade e rapidez de manifestação.
Não é por acaso que os mesmos estados, que até a pouco defendiam ferrenhamente o princípio do orçamento equilibrado, estão dispendendo volumosos recursos para manter a liquidez, para ajudar as médias e pequenas empresas, para amparar os trabalhadores e as famílias mais necessitadas; ao mesmo tempo que estão suspendendo o pagamento de impostos e de serviços essenciais por alguns meses, entre outras medidas. Para essa “mudança” de atitude, certamente pesou o fato de a desestruturação econômica estar ocorrendo em grande parte do mundo e da tragédia humana ser generalizada.
A pandemia tem demonstrado duas facetas no que se refere às relações com o exterior. De um lado, a solidariedade entre países, tais como a ajuda propiciada à Itália pela China e Cuba, e a transferência de enfermos franceses para a Alemanha. De outro, uma corrida para garantir, a qualquer custo, o suprimento de insumos, materiais e equipamentos, cuja produção é altamente centralizada na China e mesmo na Índia (insumos para medicamentos); o não cessamento das hostilidades nos países que estão em situação de guerra; e a manutenção das sanções econômicas aos países não alinhados aos Estados Unidos.
É necessário fortalecer os laços de solidariedade, apoiando todas as iniciativas que vão nesse sentido, rompendo todos os cercos e promovendo a troca de experiências, informações, expertises e recursos. Nessa situação, quando a defesa da integridade da população está em questão, as dívidas externas devem ser “esquecidas” por seus governantes ou fortemente reduzidas pelos seus proprietários (credores). Para isso, os países que enfrentam esse tipo de constrangimento devem buscar o apoio junto àqueles que, por suas características de países periféricos ou dependentes, certamente sofrerão mais os efeitos da crise econômica que se inicia. Colocar a necessidade humanitária acima dos reclames dos credores é mais do que uma estratégia a ser adotada pelos países com dívida. Trata-se de uma obrigação. No mínimo, é preciso entender que não há dívida se não há vida, é essa que está sujeita a desaparecer pela doença ou pela fome decorrente da crise econômica que se abate sobre as economias.
Quanto à fuga de capitais, que bateu o recorde nas economias chamadas de emergentes, não há o que fazer se mantido o câmbio flutuante, sem nenhum tipo de controle sobre o fluxo de capitais.
A crise será intensa e longa, pois as características do novo coronavírus não permite se dizer por quando tempo estaremos refém de sua evolução. Somente o surgimento de uma vacina pode alterar o quadro de incerteza a ela relacionado. A brusca e profunda parada das atividades, desorganizando as relações locais, nacionais e mundiais, será tanto maior quanto mais longa for a superação da doença. No meio disso, podem se fortalecer saídas chauvinistas, com certeza. Mas devemos lutar para que ações solidárias entre nações amigas se fortaleçam em nome de projetos comuns. Nesse caso, não se trata de um jargão: de fato o futuro está em aberto, pois o mundo, tal como o conhecemos, não tem como voltar a se impor.
Rosa Maria Marques é membro dos Grupos de Trabalho da Clacso Integración Regional e Seguridad Social e professora titular da PUC-SP.