Constitucionalização da barbárie, privatização e meritocracia

As medidas do governo Bolsonaro estão sendo acompanhadas por Projetos de Emendas Constitucionais – PECs – de forma a eternizar na Constituição as características distintivas do conservadorismo e do neoliberalismo. Especialmente no caso da economia, trata-se de blindar o livre mercado pela Constituição, de forma que as demandas provenientes das lutas populares dificilmente possam ser acatadas pelo Congresso.
 
A mais nova ideia a ser enviada ao Congresso atual é a relativização do papel do Estado na garantia dos direitos sociais, o que deverá conduzir à ampliação das áreas disponíveis para privatização e legitimar a transferência de recursos públicos para o setor privado, via mecanismos de atenção mínima (vouchers, por exemplo).

O artigo 6º da Constituição diz:

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a Previdência Social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

O governo Bolsonaro está propondo introduzir na Constituição Federal um dispositivo que condiciona estes direitos sociais à existência de recursos financeiros do Estado.

A consequência desta mudança é limitar o alcance do artigo sexto e estabelecer que os direitos, para serem exercidos, dependem da existência de recursos disponíveis. Ou seja, tais direitos passam a ser problemas pessoais que devem ser resolvidos por cada um no mercado. Direitos são convertidos em serviços a serem adquiridos segundo a possibilidade de cada um (por seu próprio mérito), sendo, portanto de responsabilidade pessoal e não mais de responsabilidade do Estado. O Estado pode até ajudar, mas de acordo com seus limites orçamentários.

A mudança incentivará o acesso a estes direitos pela via do mercado, na forma de “serviços”, ampliando a privatização. A ideia é incentivar a privatização pela omissão do Estado, combinada com atendimento mínimo, sensível a quanto dinheiro o Estado tenha, sem pressionar cobranças de impostos.

No caso da educação, incentiva a abertura da área para a emergência da privatização por terceirização de escolas e pela introdução de vouchers, que permitem ao Estado definir um limite máximo de ajuda ao cidadão para que ele cuide da educação dos filhos. Os vouchers permitem pagar um certo nível de escola, a partir do qual, se ele desejar algo melhor, deve complementar com recursos próprios. Enquanto as elites complementam e pagam ingresso de seus filhos nas melhores escolas, os mais pobres só têm a escola pública (agora dilapidada pela transferência de recursos para a iniciativa privada) ou particulares de média e baixa qualidade para matricular seus filhos com o dinheiro do voucher (Treviño, 2018).

O Estado se desobriga de garantir educação de qualidade para todos, sendo esta uma questão para o indivíduo resolver dentro da lógica do mercado, na dependência de quanto dinheiro cada um carrega no bolso.

A privatização da educação tem a função adicional de permitir, pela vivência da lógica do mercado, a introdução da figura de “ganhadores e perdedores” no âmbito da educação. Ela permite a vivência do jogo da concorrência e do empreendedorismo, guiado pela meritocracia excludente. A educação, alojada no mercado, forma a juventude segundo a lógica deste mercado. A meritocracia, em sua aparência democrática, exalta os “ganhadores” e justifica a posição de “perdedores” como falta de mérito. Desigualdades sociais são reconvertidas em desigualdades de mérito – sendo, portanto, legitimadas.

A mudança visa dotar os governos em todos os níveis da federação de uma justificativa legal para promover a barbárie. É possível ver na medida o reflexo da visão neoliberal que considera que isso levaria o povo a se motivar e a pensar no futuro, ao invés de depender do Estado – afinal, o pobre também precisa apender a poupar e não a gastar tudo que ganha. Ele precisa “evoluir”.

A constitucionalização da barbárie induz um processo de privatização, o qual induz à vivência da concorrência e da meritocracia. Esta, por sua vez, justifica a barbárie, realimentando todo o círculo. Sob pressão da crise sistêmica do capitalismo, este círculo vicioso se converte em uma espiral de violência proto-fascista que se não for interrompida, levará a formas fascistas de organização social.

A constitucionalização da barbárie, mascarada de boa economia, esconde todo o darwinismo social que orienta as teses deste liberalismo radical. Suas bases bem poderiam ser explicadas pelo pensamento de Herbert Spencer em suas queixas contra o Estado em meados do século 19:

“Os pobres merecedores estão entre os que são taxados [com impostos] para apoiar os pobres indignos. Como sob a velha Lei dos Pobres, o trabalhador diligente e previdente tem que pagar para que a pessoa inútil não sofra, até que, frequentemente, sob este fardo extra, ele mesmo se desmorona e tem que refugiar-se no abrigo de pobres. (Spencer, H. (1892) O Indivíduo contra o Estado, posição 1719.)

Para Spencer, é lícito que a família ajude os filhos até uma idade em que possam construir sua vida, de forma a preservar a espécie; é lícito também que um indivíduo decida (com seu dinheiro) ajudar outra pessoa, embora isso não seja recomendado sem alguns cuidados; mas não é lícito que o Estado arrecade impostos de uns (bem-sucedidos) para ajudar a outros (mal-sucedidos).

Para ele, o sofrimento tem uma função adaptativa e a mitigação deste pode interferir com as leis naturais da evolução. Se isso ocorre:

“Em vez de diminuir o sofrimento, acaba aumentando. Ela favorece a multiplicação daqueles que são os que pior se adaptam à existência e, por conseqüência, impede a multiplicação daqueles que melhor se ajustam à existência – deixando, assim, menos espaço para eles. Tende a encher o mundo com aqueles a quem a vida trará mais dor, e tende a manter fora dele aqueles a quem a vida trará mais prazer. Inflige a miséria positiva e impede a felicidade positiva. ”- Social Statics, pp. 322-5 e pp. 380-1 (edição de 1851). O lapso de um terço de século desde que essas passagens foram publicadas, não me trouxe nenhuma razão para me retirar da posição assumida nelas.” (Idem, 1892, posição 1657.)

Esta filosofia ensina que o sofrimento tem um lugar na evolução da humanidade e sua mitigação além de interromper tal evolução, somente pode ser feita por via filantrópica e nunca pela ação arrecadadora de impostos do Estado que, ao proceder assim, penaliza exatamente aqueles que, por serem esforçados e mais evoluídos, injustamente sofrem tanto quanto os imprevidentes e desmotivados que não evoluíram – leia-se que não se esforçaram e que, portanto, não têm mérito. Estes são uma sub-categoria de “cidadãos” sem mérito e portanto, podemos agregar, considerados sem direito a direitos (Gamble, 1988).

Esta forma de ver a sociedade e que se quer agora constitucionalizar, tem a ver também com as reformas que estão sendo induzidas na educação. É lá que se está preparando a juventude para aceitar esta visão, seja pela reforma empresarial, seja pela militarização. Para Spencer:

“O professor da velha escola que mostrou ao seu aluno o caminho para sair de cada dificuldade, não percebeu que estava gerando uma atitude mental que jogava contra o sucesso na vida. O professor moderno, no entanto, induz seu aluno a resolver suas dificuldades acredita que, ao fazê-lo, está preparando-o para enfrentar as dificuldades para as quais, quando ele for ao mundo, não haverá ninguém para ajudá-lo, e encontra confirmação para essa crença no fato de que uma grande proporção dos mais bem-sucedidos se fizeram por si mesmos. Bem, não é óbvio que essa relação entre disciplina e sucesso seja boa em nível nacional? (Spencer, H. O indivíduo contra o Estado, 1892, posição 2538.)

O mundo spenceriano é um mundo do “empreendedor de si mesmo”, vivente da concorrência que o desenvolve e o faz evoluir. Não é um mundo da solidariedade e a escola deve preparar seus estudantes para esta falta de solidariedade no mundo da competição natural. O ser humano não deve ser preparado para mudar este mundo descrito por ele, mas sim deve aprender a viver nele – deve adaptar-se a ele para sobreviver e fazer evoluir sua capacidade de adaptação às mudanças.

Esta ideia de valorizar o sofrimento (resiliência?) como evolução é que informa a ideia do liberalismo radical de impedir a ação equalizadora do Estado, pois isso, além de prejudicar a evolução de alguns, levaria a ampliar as funções do Estado, exigindo maior cobrança de impostos dos outros mais evoluídos, os virtuosos ricos.

É isto que significa constitucionalizar a visão de que os direitos sociais passam a depender da situação econômica do Estado (o que permite ter espaço para desonerar o capital, diminuir impostos). Os direitos sociais não têm valor, em si mesmo, como peça de equalização da participação de todos na arena política. A participação se dá no mercado.

A participação está reservada aos esforçados e meritosos. Qual o papel do Estado, então? Garantir a vida, no sentido de proteger da agressão de outros Estados; garantir a liberdade, no sentido de poder empreender por si mesmo, e garantir a propriedade acumulada durante a vida pelo uso da liberdade – quando acumulada. Mais que isso o Estado não deve fazer, pois interfere com a lógica suprema do livre mercado que a tudo ilumina e faz evoluir sob o lema de que a cada um se dá segundo sua contribuição no mercado (Streeck, 2016).

O liberalismo centrista que emergiu no final do século 19 (Wallerstein, 2011) e que ampliou as funções inclusivas do Estado com a noção do cidadão de direitos iguais, uma proclamação nem sempre cumprida, reconhecia que os direitos sociais viabilizariam a maior participação de todos nos processos decisórios políticos. Bem ou mal, realidade ou ficção, assume que todos têm direito a participar (independentemente de seu QI e de suas posses) e que para tal, garantir alguns direitos sociais e políticos são fundamentais para aumentar e viabilizar tal participação – por exemplo, garantindo a todos educação básica, permite-se que seja aumentada a qualificação da participação. Portanto, os direitos sociais também viabilizam o exercício dos direitos políticos.

Para o atual governo não interessa maximizar a participação política e portanto, não há interesse nos direitos sociais que viabilizam tal participação. Para governos autoritários (e nisso tanto conservadores como neoliberais convergem) o inimigo da boa economia é a participação popular, a qual é guiada por políticos “corruptos” e corporativistas (usualmente sindicalistas) que promovem a destruição do livre mercado, impedindo o crescimento econômico de todos, ao atender as pressões da participação popular. Nada melhor, então, do que cortá-los condicionando-os à situação econômica. Fornece-se, dessa maneira, a base jurídica para o autoritarismo governamental. O estado de exceção é perenizado na Carta Magna. O livre mercado é constitucionalizado, como recomendava James Buchanan em seus estudos financiados pelos irmãos Koch (MacLean, 2017)

Como a fase atual do capitalismo é a de uma crise sistêmica permanente (Meszaros, 2009; Wallerstein, 2011) para a qual não se viabiliza nenhuma forma (incluindo o neoliberalismo) de sair dela, interrompendo o circuito baixo crescimento/desigualdade que conduz a mais desigualdade/baixo crescimento (Streeck, 2016), é claro que o Estado estará em permanente crise e, portanto, permanentemente negando os direitos sociais à maioria da população, agora com a Constituição a seu favor.

Enquanto isso, a título de aumentar o crescimento da economia (leia-se rentistas e produtores) se argumenta que o capital deve ser apoiado pelo Estado, com a desculpa de que gerará empregos (reconhecidamente precários), sendo legítimo desonerar a produção e diminuir impostos que, a exemplo do que faz Trump nos Estados Unidos, favorecem amplamente as elites.

O Estado, com esta constitucionalização da miséria, assume, dessa forma, um lado claro: apoio ao capital (e as elites) como forma de subsidiá-las durante a crise sistêmica do capitalismo. Isso é claramente a constitucionalização do “darwinismo social” – antessala do fascismo. Estamos assistindo o fim do capitalismo “democrático” (Streeck, 2016) e a emergência do capitalismo autoritário.

O papel da educação está definido pela reforma empresarial da educação: pela meritocracia dos exames e das provas – deve permitir a vivência do individualismo concorrencial que destrói a formação da solidariedade. A introdução da concorrência nas salas de aula permite constituir nos jovens a base do descarte do outro pela destruição da solidariedade. Os estudantes passam a não ter companheiros de turma – mas apenas concorrentes. E concorrentes devem ser eliminados e não ajudados.

Na proposta a ser enviada ao congresso para alterar o Artigo 6º. ainda será possível ler:

“Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.

Este discurso oportunista faz eco a outra argumentação de Spencer na qual ele diz:

“Evidentemente, deve-se admitir que a hipótese de um contrato social, seja sob a forma assumida por Hobbes ou sob a forma assumida por Rousseau, não tem fundamento. Mais ainda, deve-se admitir que, mesmo que esse contrato tivesse sido constituido, não poderia ser obrigatório para além daqueles que o constituiram.” (Spencer, H. (1892) O Indivíduo contra o Estado, posição 2723.)

O objetivo, portanto, é redefinir o contrato social vigente. Um contrato social que garante a inclusão, segundo esta visão, seria autoritário ao impor sacrifícios intergeracionais.

É uma maneira engenhosa de roubar o bem-estar das gerações futuras, alegando que não podemos decidir por elas. No entanto, ela oculta que a juventude, de forma intergeracional, já está, simultaneamente às gerações mais velhas, participando dos mecanismos de definição da vontade geral, pois vota nas eleições nos seus representantes.

Tudo se passa como se estes seres iluminados pelas teses neoliberais houvessem descoberto as regras do bom desenvolvimento econômico, que querem eternizar agora na Constituição, e que conduziriam ao progresso geral. É como se não fossem representantes dos interesses das elites que, cientes da crise do capitalismo, promovem a destruição do Estado da “vontade geral”, inclusivo, ainda que precariamente espelhado na modesta democracia liberal representativa, para reservá-lo ao atendimento dos seus próprios interesses, reservando o que resta dele, para os propósitos acumulativos da elite e de seus filhos.

O que Guedes reinvida é o “direito” de impor às futuras gerações, unilateralmente, a aceitação das teses do neoliberalismo – hoje e sempre, de maneira que fiquem a salvo das pressões que as lutas populares farão sobre o Congresso. Trata-se de constitucionalizar o “livre mercado” e as teses neoliberais ou, se quisermos dizer o mesmo pelas consequências desta decisão, trata-se de constitucionalizar o “bem-estar” das elites e a miséria da grande maioria da população.

O que as elites não conseguem ver é que enquadrando a sua própria juventude nos limites estreitos de uma meritocracia excludente e permanente, os vencedores deste jogo, seus próprios filhos, estão entrando em uma armadilha autodestrutiva (Morkovitz, 2019).

O sistema capitalista “crachou”, como se diz em informática. Faliu. E as elites resolveram cuidar apenas de si mesmas, e pensam que, com isso, estão garantindo o bem-estar para elas e seus filhos – hoje e sempre. Para tal, tiveram que tomar o Estado de assalto e reservá-lo para si mesmas. Nisso coincidiram os interesses, por diferentes caminhos, de conservadores absolutistas e neoliberais autoritários.

Luiz Carlos de Freitas é professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP 

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