Dados pessoais na internet: o novo petróleo do mundo
Publicado 02/04/2019 - Atualizado 03/04/2019
Sem sombra de dúvidas, a internet se tornou algo quase que essencial para a atual sociedade. Similar ao que aconteceu com a televisão e o rádio quando surgiram, a internet tem se colocado como um serviço que tem desenvolvimento, novas oportunidades comunicacionais, incremento nas áreas de saúde e educação e novas formas de sociabilidade.
Inicialmente presente em meios militares e/ou acadêmicos, a rede mundial de computadores passou a ser utilizada por vários segmentos sociais. Exemplo disso são os estudantes que passaram a buscar informações para pesquisas escolares, enquanto jovens a utilizavam para a pura diversão em sites de games. As salas de chat tornaram-se pontos de encontro para um bate-papo virtual a qualquer momento. Desempregados iniciaram a busca de empregos através de sites de agências de empregos ou enviando currículos por e-mail. As empresas descobriram na Internet um excelente caminho para melhorar seus lucros e as vendas on line dispararam, transformando a Internet em verdadeiros shopping centers virtuais. Só no primeiro semestre de 2015, foram movimentados mais de 18,6 bilhões de reais de compras e-commerce, segundo dados da E-Bit/Buscapé.
Junto com todos esses novos paradigmas, a internet trouxe também novas formas comerciais, assim como novas violações á direitos já consagrados, como a violação de privacidade e venda de dados pessoais. Dados pessoais se tornaram o novo petróleo do mundo. Para se ter uma ideia do que nossos dados representam no mercado digital, segundo jornal El País, nossos dados valem em média 8 centavos de dólar, por pessoa. Este é o valor que as empresas interessadas nas informações de internautas pagam para montar seus próprios bancos de dados. Essas informações são posteriormente usadas para mapear perfis específicos com hábitos de compras, preferências pessoais e até orientação política de milhões de pessoas.
“O fato de se poder comercializar essas listas e de que elas possam acabar chegando a pessoas indevidas torna possível que sejam usadas em iniciativas que poderiam atingir os direitos humanos, como a criação de perfis sofisticados que podem atentar contra a privacidade”.
Inclusive, foi na Espanha que o Facebook, uma das redes sociais que está entre as maiores empresas que coletam dados pessoais dos usuários, foi multada. A Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) impôs uma multa de 1,2 milhão de euros ao Facebook por violar as regras espanholas de proteção de dados. A Agência constatou que a empresa recolhe, armazena e utiliza dados dos seus usuários, incluindo os que são protegidos, para fins publicitários sem autorização nenhuma das pessoas.
Um aspecto importante que precisa ser destacado, é que esse “tráfico” de dados seja para venda ou para potencializar e direcionar campanhas publicitárias, não é algo que acontece somente com as empresas de tecnologia. No Brasil, podemos citar vários casos, dentre eles o da rede de supermercados Pão de Açúcar.
A empresa, uma grande rede nacional de supermercados, criou um aplicativo, o “Pão de Açúcar Mais” que já foi baixado por mais de 500 mil pessoas, cujo objetivo é garantir descontos importantes em diversos produtos. Até aí tudo bem, afinal quem não quer ter bons descontos em produtos e serviços? Mas fica uma pergunta: o que a empresa ganha com isso? A resposta é: os dados pessoais dos clientes usuários do aplicativo. Apesar do negócio do Pão de Açúcar não ser tecnologia, a partir do momento em que ele tem acesso aos dados pessoais dos usuários do aplicativo, que são fornecidos como condição para ele poder utilizar o aplicativo, é possível direcionar campanhas em sua ampla rede de estabelecimentos ou pior ainda, fornece-los para empresas parceiras. E isso pode ser de maneira gratuita ou mediante algum preço.
Essas práticas muitas vezes têm em comum os modelos de termos de uso e política de privacidade. Hoje, para termos acesso às diversas facilidades de serviços por meios dos aplicativos, seja de uma compra com desconto, como este caso da rede de supermercados brasileira, ou facilidades de comunicação, como no caso de uma aplicação como o Facebook, temos que nos submeter às regras impostas pelos termos de uso e aceitar as políticas de privacidade dessas grandes corporações.
Esses termos de uso, combinados com a política de privacidade dessas aplicações permitem o monitoramento da navegação dos usuários em outros sites (por meio da instalação de cookies, arquivos de internet que armazenam temporariamente o que o internauta está visitando na rede). Em quase todos os casos, estes termos não são lidos. E se caso fossem e tivéssemos alguma discordância, nem a chance de questioná-los teríamos, porque ao negá-los, simplesmente não temos acesso ao aplicativo. Ou seja, não é um acordo e sim uma imposição.
Essa é uma prática abusiva e impositiva aos usuários. No fundo, observa-se que esses serviços não são grátis. São formas de captar nossas informações, seja de navegação ou de dados pessoais para subsidiar campanhas ou serem objetos de venda para outras empresas. É importante frisar que essa prática, a de coletar e sistematizar dados não é nova.
Seguradoras e empresas de cartões de créditos, por exemplo, já tinham essa prática de coletar nossas informações para cadastros socioeconômicos e perfis de compras. Mas agora, as diferenças são duas: a primeira, é a alta capacidade de “inputs” de informações que fazemos nessas plataformas. Diariamente, essas plataformas são abastecidas com nossas informações em uma velocidade vertiginosa pois a digitalização dos dados facilitou essa prática e faz com que geremos informações em tempo real a partir do momento que estamos conectados. E hoje, passamos grande parte do tempo de um dia conectados. O volume de dados gerados é enorme.
A segunda é a capacidade de processamento das informações coletadas. Antes, essas informações eram armazenadas em papel ou em algum banco de dados que não permitia uma comunicabilidade e cruzamento entre eles. A partir do momento em que você cria uma tecnologia capaz de cruzar determinadas informações, você cria um novo leque de informações capaz de direcionar e individualizar ações que antes eram feitas sem muita precisão. Isso é o que se chama de Big Data.
A partir da análise adequada de todo esses conjuntos de dados, é possível encontrar tendências de negócios, gostos e toda espécie de preferência de uma pessoa. Antes destas empresas de tecnologia, o Estado era o maior detentor de informações de um cidadão. Em São Paulo por exemplo temos visto a prefeitura da capital, comandada por Dória, utilizar dados dos cidadãos usuários cadastrados no programa bilhete único como moeda de troca na tentativa de obter um bom negócio com empresas.
Diante dos graves problemas apontados aqui, é preciso alertar a sociedade em geral sobre o que está acontecendo com os seus dados. No Brasil, entidades organizadas na Coalizão Direitos na Rede (que reúne dezenas de entidades da sociedade civil, pesquisadores e organizações de defesa do consumidor) lançaram a campanha “Seus Dados São Você: liberdade, proteção e regulação”. A iniciativa promove diversas ações para pautar o tema e chamar atenção para a necessidade de construir regras que evitem esses abusos, em especial uma legislação para o assunto.
A Campanha tem uma extensa agenda que passa por eventos e à disseminação de matérias em redes sociais, na tentativa de denunciar as abusividades cometidas por aqueles que usam dados pessoais e privados como moeda de troca. É importante frisar, como já foi dito, que é necessário navegar na internet e utilizar todas as facilidades proporcionadas pelas aplicações existentes. Mas isso não significa de forma alguma que nossa privacidade seja violada ou que devemos ser reféns das praticas abusivas dessas grandes corporações. A campanha teve papel chave para garantir direitos no texto da Lei geral de proteção de dados aprovada em 2018.
Um outro ponto que precisa ficar claro que é que este debate não passa pela lógica do “não tenho nada a esconder”. O foco aqui é impedir que empresas ganhem com nossas informações pessoais e parem de nos monitorar sem nossa autorização. Temos o direito de não ter nossa privacidade violada. É preciso compreender que este é um direito que não merece ser violado. É nossa intimidade que está em jogo. E isso envolve nossos direitos nas grandes plataformas.
O Facebook foi multado em diversos países por abusos na coleta e tratamento de dados. Nos Estados Unidos, uma investigação sobre a vigilância da plataforma em 2011 terminou em um acordo segundo o qual a empresa teve de mudar regras internas sobre o processamento de dados dos usuários. Em 2017, a autoridade regulatória da área de informação da França (CNIL) aplicou multa por diversas violações na legislação nacional de proteção de dados. A autoridade (CNIL, 2017) apontou diversas violações. Entre elas estavam a compilação de uma vasta quantidade de dados para publicidade direcionada sem ter base legal para isso e o rastreamento de navegadores de usuários em outros sites por meio do uso de cookies sem seu conhecimento. Em 2018, a companhia foi multada no Reino Unido em €500 mil, o máximo permitido no país, pelo escândalo da Cambridge Analytica. Na Itália, a rede social digital ganhou multa maior no mesmo ano, de €10 milhões, por má condução de seus usuários no tocante ao uso de seus dados (EMBURY-DENNIS, 2018). O primeiro problema foi incentivo a logar sem uma explicação adequada de como seus dados são usados por terceiros. O segundo foi a pressão para desencorajar usuários a tentar limitar como a empresa usa seus dados pessoais.
Neste ano, o Parlamento Britânico lançou um relatório examinando o papel das plataformas digitais, especialmente do Facebook, no uso de dados de pessoas com perfil na disseminação de desinformação. A apuração foi motivada por diversos casos no país, como a atuação da Cambridge Analytica no referendo sobre a saída do país da Europa (também conhecido como Brexit). O comitê responsável teve acesso a e-mails da companhia em razão de um processo judicial nos Estados Unidos que revelaram diversos abusos com as informações dos usuários, como: manipulação de configurações de privacidade para repassar dados a desenvolvedores de apps, cobrança de preços maiores a desenvolvedores em troca de dados e represamento de dados a algumas empresas de modo a afetar seus negócios. O relatório foi bastante duro nas críticas à rede social em razão de suas descobertas. “Companhias como o Facebook não deveriam poder se comportar como ´gângsters digitais´ no mundo online, considerando-se à frente e fora da lei”.
Enquanto isso, no Brasil a atuação do Facebook e de outras plataformas digitais no tocante aos dados teve como marco a aprovação, no ano passado, da Lei Geral de Proteção de Dados. Embora menos rígida do que gostariam organizações defensoras de direitos digitais, ela preencheu um vácuo e definiu obrigações de empresas e instituições públicas, bem como direitos a titulares de dados. Além disso, previu uma estrutura institucional para a fiscalização da lei, fixando punições (como multas) e criando uma autoridade independente. Com a entrada em vigor somente em 2020, dois desafios estão postos neste momento de transição. O primeiro foi a edição de uma Medida Provisória no apagar das luzes do governo Temer retirando o caráter independente da autoridade, flexibilizando as regras para o Poder Público e piorando a lei em alguns trechos. Esta MP ainda está em disputa no Congresso. Outro desafio é a sua aplicação prática, uma vez que em diversos aspectos ela define princípios, mas será nos casos concretos que sua efetividade na proteção da privacidade será concretizada, ou não. Por isso, a autoridade ganha importância tão grande. Enquanto os gigantes da Internet avançam em poder sobre indivíduos, coletividades e instituições, faz-se cada vez mais necessário impor limites que assegurem direitos aos cidadãos no ambiente online.
É preciso que a sociedade civil de toda a América Latina cobre dos governos de seus países a criação de órgãos reguladores que garantam a proteção de dados pessoais dos cidadãos, prevendo leis que impeçam a venda e o uso sem autorização de suas informações pessoais.
A garantia em lei desses nossos direitos é o que nos permitirá uma maior segurança perante esses gigantes da internet e governos que usam nossas informações como mercadoria. A internet é uma tecnologia que veio para garantir direitos, como o da liberdade de expressão, e não para retirá-los.
Jonas Valente e Marcos Urupá Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social