O pleno emprego como suporte da democracia

A maioria das pessoas consultadas sobre o significado da palavra “democracia” dirá que se trata de um regime político caracterizado pelo “poder do povo”. É um equívoco. “Demo”, em grego antigo, não significa povo. Significa uma medida agrária usada por Sólon, o legislador lendário, para delimitar propriedades rurais na Ática clássica. Com isso, etimologicamente, “democracia” significa “poder dos fazendeiros”. A democracia grega foi progressivamente estendida a outros cidadãos, é verdade, mas nunca a escravos e não proprietários.

A Constituição norte-americana, a primeira da era moderna, foi promulgada principalmente por fazendeiros em defesa de proprietários de terras. Também na França, as três primeiras convenções da Revolução Francesa foram fundamentadas na defesa do direito à propriedade privada. Isso bastou para que o filósofo alemão, Johan Fichte, no início do século 19, fizesse a pergunta crucial: ‘Sim, vocês fundamentaram a democracia na defesa do direito de propriedade privada. Mas o que farão com aqueles que não tem propriedade?’

A contradição implícita nessa pergunta esteve na raiz da grande instabilidade que caracterizou o século 19 e o início do século 20 como a Era das Revoluções, no dizer de Eric Hobsbawm. Teoricamente, foram concebidas várias respostas: os anarquistas, que simplesmente negavam a propriedade; socialistas utópicos, que advogavam a melhor distribuição dos frutos da propriedade; marxistas, que propunham (e realizaram na Rússia e na China) a coletivização dos meios de produção; fabianos, com soluções distributivistas etc.

O centro da controvérsia, na medida do avanço do capitalismo, acabou se polarizando entre o capital e o trabalho. Mas mesmo onde não havia uma clara divisão de classes entre trabalhadores e capitalistas o conflito entre proprietários e não proprietários pautava a luta social. Contudo, o progresso de idéias socialistas e o avanço político das classes despossuídas (voto feminino, voto universal) representaram no início do século 20 conquistas objetivas pelos não proprietários, num processo que consolidaria política e socialmente as classes médias.

Entretanto, as duas guerras mundiais, com o massacre de milhões de vidas de trabalhadoras e trabalhadores, suscitou, no Ocidente, uma espécie de consciência de culpa das elites políticas em relação ao sistema político capitalista. Foi nesse contexto que, sobretudo nos Estados Unidos, surgiu o conceito de pleno emprego, transformado em lei em 1945. Estritamente definido, pleno emprego é a situação no mercado de trabalho onde todos os aptos e dispostos a trabalhar conseguem ocupação remunerada relativamente estável. Politicamente, é o contraponto fundamental ao direito de propriedade privada.

Evidentemente que, na prática, o pleno emprego pretendia ser uma resposta ao comunismo soviético, onde, em tese, e por definição, havia emprego para todo o mundo que o quisesse. Politicamente, as políticas de pleno emprego adotadas na Europa Ocidental também visavam a confrontar não só a ameaça externa soviética, como também a ameaça socialista interna constituída pela vasta representação parlamentar que tiveram, no pós-guerra, socialistas e comunistas franceses e italianos, com sua aura de heroísmo pelo enfrentamento na guerra do nazismo e do fascismo como maquis.

De qualquer modo, os 25 anos de ouro do capitalismo no pós-guerra foram de notável estabilidade social, crescimento econômico e virtual pleno emprego. O “perigo vermelho” foi afastado não em razão de ideologias, mas da melhora efetiva das condições sociais para os trabalhadores de todas as faixas salariais gozando de um efetivo Estado de bem-estar social. Parecia ser a paz eterna de Kant, não obstante a Guerra Fria. Aconteceu então o impensável: nos Estados Unidos e nos países mais desenvolvidos da Europa Ocidental ressurgiu com força uma ideologia liberal que se presumia morta, o liberalismo, agora na forma de neoliberalismo.

A mensagem central do neoliberalismo é o expurgo nas sociedades que o adotam de todas as estruturas sociais construídas ao longo de um século em favor dos pobres ou dos despossuídos. Em seu conceito, o Estado deve restringir-se às Forças Armadas e à polícia, sendo que o que concebemos como políticas sociais deve ser realizado exclusivamente pelo setor privado, inclusive saúde, educação e previdência. O pleno emprego, nessa doutrina, contraria os objetivos de eficiência econômica e produtividade de economias globalizadas, pois impede a consolidação de exércitos industriais de reserva.

É inacreditável que, mesmo em países que não construíram um Estado de bem estar como o Brasil, uma doutrina econômica tão excludente como o neoliberalismo possa angariar tantos simpatizantes. É claro que a adesão é também uma mistificação. Tomando como referência as últimas eleições, Jair Bolsonaro, o vitorioso, confessadamente não tinha e não tem qualquer noção sobre o neoliberalismo. Ele entregou todas as funções do Estado relativas à economia para Paulo Guedes, este, sim, fascinado pelas teses liberais e neoliberais. Entretanto, a vitória eleitoral foi, paradoxalmente, um protesto contra uma situação social – basicamente, desemprego e insegurança – que o próprio neoliberalismo visa aprofundar.

O pleno emprego não pode ser imposto às empresas privadas, que, afinal, são as maiores empregadoras na economia. De fato, quando se fala em pleno emprego fala-se em políticas públicas que criem condições favoráveis ao investimento empresarial público e privado. Este, sim, é que vai gerar empregos novos. Além disso, como estamos em recessão, é fundamental a expansão dos gastos públicos do governo para gerar demanda, seja nas áreas de infraestrutura, seja na área de serviços essenciais (saúde, educação, segurança). Para financiar esses gastos, que não têm risco de gerar inflação porque a demanda inicial está fraca, o governo deve recorrer ao aumento temporário da dívida pública. Como qualquer um, também o governo pode recorrer a crédito quando precisa impulsionar a economia.

Chamamos políticas de pleno emprego de políticas keynesianas, derivadas do nome do maior economista do século 20, John Maynard Keynes. Keynes é odiado pelos neoliberais porque não faz concessão ao sistema financeiro especulativo e foi um obstinado pela recuperação da economia real e do emprego em situações de recessão, como na Grande Depressão dos anos 1930. Considerando que a banca ocidental é quem manda no mundo, atualmente, é necessário reconhecer que, a não ser por forte mobilização de massas, não construiremos uma política de pleno emprego no Brasil a não ser varrendo do sistema político os últimos vestígios do neoliberalismo.

O momento dessa virada é sempre político. Dependerá do espírito de luta dos trabalhadores, o qual, por sua vez, será animado pelas condições sociais objetivas. Temos praticamente um terço da população em idade ativa brasileira em situação de desemprego ou de subemprego. É um terrível desafio à cidadania. A reação não demandará muita coisa. Se temos uma democracia imperfeita no plano social, ela ainda tem brechas no plano político para forçar o Estado a promover avanços sociais em lugar de revertê-los. Na realidade, em nome da estabilidade política, a principal responsabilidade do Estado é promover o pleno emprego – o que garantirá, como conseqüência, a retomada da economia e a plena recuperação financeira da Previdência Social, cuja única crise é a queda da receita provocada pela recessão de quatro anos.

A história não vai parar para ver Bolsonaro/Guedes passarem. É fato que a estabilidade social e política está condenada pela obsessão ideológica deles de implantarem o neoliberalismo no Brasil para além do que fez Michel Temer. Voltaremos, inexoravelmente, às convulsões sociais determinadas por conflitos entre proprietários e não proprietários de 200 anos atrás. A superação disso virá, em algum momento. E, quando vier, virá na forma de uma política de pleno emprego de modo a consolidar a democracia brasileira – uma democracia de todos para todos, e não apenas dos e para os proprietários da terra e do capital, uma plutocracia.

J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política da UEPB, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política brasileira.

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