Um golpe mortal no SUS

O modelo, ainda sem detalhamento técnico, apresentado pelo governo Bolsonaro direciona o atendimento para a população mais pobre. Reprodução

Durante os anos que se seguiram à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), não foram poucos os problemas por ele enfrentados. Apesar disso, é fora de dúvida que uma saúde pública, universal e integral estava sendo construída no país. O preceito expresso no artigo 196 da Constituição – “A saúde é direito de todos e dever do Estado” – constituiu, assim, simultaneamente, em norte a ser perseguido e em norma organizadora de seus serviços e ações. A situação mudou radicalmente depois do golpe impetrado contra a presidente Dilma Rousseff, especialmente quando da aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), em dezembro de 2016. Coerentemente com o diagnóstico econômico expresso no documento “Ponte para o Futuro” (PMDB, 2015), foi eleito o déficit público como o responsável por todas as mazelas do país e definido que, para fazer frente a ele, só haveria um caminho: o de congelar o nível do gasto federal por vinte anos, nele incluídos os gastos sociais e, portanto, a saúde pública, e dele excluindo o serviço da dívida.

Eleito Jair Bolsonaro para a presidência da República, não houve descontinuidade no tocante à orientação econômica. Pelo contrário, os diagnósticos e propostas contidos no Ponte para o Futuro foram integralmente abraçados, posto que traduziam (traduzem) o pensamento ultraliberal da equipe econômica do novo governo. Contudo, no campo da saúde pública, objeto desta reflexão, o quadro não ficou o mesmo. Pode-se dizer que, de lá para cá, o SUS passou a viver sob constante ataque. As investidas são de toda a ordem. Além do (des)financiamento provocado pelo novo regime fiscal decorrente da EC 95, houve alteração dos princípios norteadores de importantes políticas, tais como as dirigidas à doença mental e ao tratamento da dependência química; o desmantelamento do Programa Mais Médicos, que garantia a prestação da atenção básica especialmente em localidades de difícil acesso e de população de baixa renda, e o rebaixamento da importância do programa de combate ao HIV/ Aids 1, entre outras mudanças. Essas se apresentaram, para aqueles que sempre defenderam a construção do SUS, como mais do que assustadoras. Isso porque sua construção nunca esteve dissociada da edificação de um convívio democrático e de um olhar não excludente com relação à população dependente química, LGBT e doente mental. As mudanças de tratamento nesse campo, que aqui não são detalhadas, refletem, como sabido, os “novos costumes” defendidos pelo atual ocupante do palácio da Alvorada. São incontáveis suas declarações sobre aspectos envolvidos nas alterações dessas políticas.

Apesar da gravidade desses fatos, posto que atuam no sentido inverso dos princípios associados a um SUS para todos (no sentido de a todos abraçar, sem juízo de valor), eles foram suplantados pela informação de que o financiamento da Atenção Primária será alterado. No dia 31 de outubro, após a realização da 9ª reunião ordinária da Comissão Intergestores Tripartite/2019 (CIT) 2, o Ministério da Saúde divulgou em sua página que: “Novos recursos de financiamento da Atenção Primária vai beneficiar municípios que melhorarem os indicadores de saúde dos brasileiros. Medida será anunciada nos próximos dias e cobrará resultados concretos”. Em outras palavras, um novo modelo de financiamento da Atenção Primária em Saúde (APS) teria sido aprovado pela CIT.

No que consiste esse novo modelo? Como diz Funcia (2019), até o momento (1/11/2019), o MS “não apresentou nenhum documento com o detalhamento dessa proposta, nem seus fundamentos técnicos e base metodológica do estudo que possam servir de referência …”. O único material disponível são os powerpoints apresentados a gestores municipais em diferentes estados e na reunião da CIT mencionada acima. Apesar da ausência de explicitação dos fundamentos técnicos e metodológicos que embasam a proposta, seu conteúdo é preocupante. Isso porque, ao detalhar o componente “capitação ponderada” que, junto com outros 3 comporiam a transferência de recursos federais para os municípios, dá destaque para a “população cadastrada em equipe de saúde da família e atenção primária credenciadas e à proporção de pessoas cadastradas nas equipes de Saúde da Família (ESF) e que recebam benefício do Programa Bolsa Família (PBF), Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários-mínimos.

Isso estaria evidenciando que o atual governo tem como objetivo voltar o SUS à população de mais baixa renda, com isso tornando letra morta sua universalidade? Como é sabido, essa não é uma proposta nova. Há muito que agências internacionais defendem que o esforço público em saúde deve ser dirigido aos setores mais vulneráveis da população, deixando a assistência à saúde dos demais ao encargo do setor privado, seja mediante Planos de Saúde ou não. Entre essas agências, destaca-se o Banco Mundial (2019), que, ao destacar as dificuldades da cobertura da APS em áreas mais pobres e distantes e sugerir, simultaneamente, a definição de um pacote de benefícios a ser coberto pelo SUS, defende uma “cobertura universal” formada por uma saúde pública voltada aos mais pobres e por uma privada, dirigida aos demais segmentos da população. Aliás, chama atenção que, ao final do powerpoint apresentado na reunião da CIT, conste agradecimentos a dois técnicos dessa instituição, significando que participaram da elaboração do projeto. Isso, por si só, já seria tema para intensa discussão, pois implica ingerência de uma instituição internacional em questões nacionais.

Não é somente o aspecto da focalização que mereceria comentários. Há outros, também muito importantes, tais como a remuneração por desempenho e por usuário cadastrado. Isso substitui as necessidades em saúde da população pelo desempenho, cuja base é sempre a otimização dos recursos. Além disso, com a nova política de transferência de recursos, abandona-se o critério da equidade, que, apesar dos problemas, está presente no Piso da Atenção Básica (PAB) fixo, que transfere recursos de acordo com a população do município. Embora esses aspectos sejam importantes, deu-se, aqui, prioridade à discussão sobre a focalização presente na proposta da nova forma de financiamento.

Essa concepção não só está longe daquela que deu base ao surgimento do SUS, como constitui no seu contrário. Por isso o título deste artigo. Nesse ponto, não há o que negociar ou pactuar. É claro que o CIT tem autonomia legal para fazer isso, mas, como se trata de uma política que pode alterar radicalmente a condução do SUS, o Conselho Nacional da Saúde, órgão responsável pela formulação da política de saúde, deveria ser o protagonista da organização da discussão, que deveria envolver o conjunto da sociedade. Dirigir a APS prioritariamente aos setores mais vulneráveis da população, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não é garantia de que esses continuem a usufruir de ações e serviços de saúde no futuro. Se alguma garantia é possível, essa deriva do fato de se reconhecer a saúde como um direito e, portanto, um dever do Estado, sem que seu acesso seja mediado pela renda do beneficiário.

Rosa Maria Marques 4 é professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSP.

Notas

1 O departamento do Ministério da Saúde que promovia o combate à Aids – o Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Não se trata de mera mudança de nome, muito embora não é negligenciável o fato de a palavra Aids ter desaparecido com a mudança de estrutura. Trata-se do HIV / Aids e demais doenças sexualmente transmissíveis estarem junto com doenças como hanseníase e tuberculose, como se não houvesse particularidades a serem preservadas, principalmente considerando o reconhecimento mundial do programa de combate ao HIV / Aids brasileiro.

2 A CIT constitui instância de articulação e pactuação na esfera federal que atua na direção nacional do SUS. É integrada por gestores do SUS das três esferas de governo: União, estados, DF e municípios. Sua composição é paritária. É formada por 15 membros, sendo cinco indicados pelo MS, cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). A representação de estados e municípios nessa Comissão é regional, sendo um representante para cada uma das cinco regiões no País. As decisões são tomadas por consenso e não por votação.

3 Os componentes seriam: 1) Capitação ponderada 2) Pagamento por desempenho 3) Incentivos a programas específicos/estratégicos 4) Provimento de profissionais.

4 A autora agradece os comentários de Francisco Funcia.

Referências

BANCO MUNDIAL. Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro. Disponível em http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-do-SUS.pdf. Acesso em 1/11/2019.

FUNCIA, Francisco. Novo Modelo de Financiamento da Atenção Primária à Saúde: ainda falta o documento oficial com o detalhamento da proposta do Ministério da Saúde – “a ousadia de fazer cumprir a lei”. In Domingueira Nº 37 – Novembro 2019. Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-37-novembro-2019 . Acesso em 1/11/2019.

PMDB. Ponte para o futuro. Fundação Ulysses Guimarães, 2015. Disponível em https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf . Acesso em 28/08/19.

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