A privatização dos nervos do Brasil

Paulo Guedes Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O programa de privatização alucinada de Paulo Guedes está invadindo áreas que seriam resguardadas do apetite privado em qualquer país no qual a palavra “estratégico” ou o conceito de “interesse público” tem alguma validade. É inconcebível a privatização fatiada da Petrobras, sob qualquer critério. É um ataque às bases estratégicas do país a pretendida privatização da Eletrobras. São empresas fundamentais para o país.

Formam a estrutura econômica central do Estado nacional. Contudo, há algo quase invisível, ainda pior.

Prepara-se a privatização de elementos invisíveis que contêm o próprio cerne da intimidade de cidadãos e cidadãs brasileiras. Serpro e Dataprev estão na lista, como se fossem uma estatal qualquer. Entretanto, se o país tem nervos, essas duas empresas são os nervos do Brasil. Todas as informações relevantes sobre o povo e as empresas brasileiras fluem por seus circuitos informatizados, que se consolidam em centros nevrálgicos. Quem tiver o controle desses centros, tem o domínio virtual da cidadania e das pautas do consumidor brasileiro.

Essas duas estatais postas à venda é como pôr à venda os nervos do corpo. Serpro, processadora, entre outros dados, do Imposto de Renda, e Dataprev, processadora de aposentadorias, pensões e seguro desemprego, tem suas bases de dados rigorosamente protegidas por protocolos especiais a fim de impedir acesso a ladrões de informações e a cessões ilegais. Todos os dados do sistema previdenciário e todos os dados do imposto de renda estão armazenados nas duas empresas, que prestam serviços a oito ministérios.

Obviamente que ninguém gostaria de ver seus dados do imposto de renda, suas dívidas, patrimônio, suas despesas médicas e educacionais, seus contatos telefônicos e de endereço, sua vida enfim, bisbilhotados por uma empresa privada, sobretudo estrangeira, que venha a poder usar esses dados e vendê-los a outras empresas, a fim de que sejam usados por sítios de vendas ou por algum conglomerado financeiro. O mesmo se pode dizer de aposentados e pensionistas, estes nas bases de dados da Dataprev. E não adianta dizer que os dados serão protegidos também pelos compradores privados. Eles, por sua natureza, só quererão lucros.

A venda dessas empresas é um insulto ao Brasil. Insulto tão grande quanto a privatização em curso da Petrobras e a privatização pretendida da Eletrobras. Faz parte do desmonte do Estado para alimentar o apetite feroz que o ministro Paulo Guedes despertou no capital financeiro internacional quando disse, em Dallas, EUA, que “colocaria tudo à venda”no Brasil. Duvido que haja um único cidadão brasileiro consciente que aceitaria sem reclamar a venda de seus dados do Imposto de Renda ou da Previdência para terceiros. Entretanto, dentro do corpo pouco conhecido do Serpro e da Dataprev, ela se torna possível sem oposição pública.

É dever do governo e da sociedade reconhecer a condição vulnerável da quase totalidade dos aposentados e pensionistas. Assim, tem que ser vedada a transmissão de dados pessoais dos beneficiários do INSS a terceiros, como informações de benefícios, contatos, informações trabalhistas e financeiras. A vedação inclui cessão dos dados a qualquer pessoa física ou jurídica, diretamente ou por meio de outra pessoa física ou jurídica, e se estende a ações de marketing bancário ou de outra natureza, oferta comercial, propostas de venda, publicidade direcionada a beneficiário específico, ou qualquer tipo de atividade tendente a convencer beneficiário do INSS a celebrar contratos e ser capturado como clientela.

Os trabalhadores de Tecnologia de Informação que atuam na Dataprev e no Serpo estão sujeitos aos rígidos códigos de conduta que os impede de violar os preceitos de confidencialidade desses dados. As bases pertencem às duas estatais e aos contratantes de seus serviços, e seu vazamento para terceiros representaria um escândalo nacional e a abertura de um processo imediato contra os suspeitos de vazamento. Agora imaginem as bases de dados do Imposto de Renda e da Previdência nas mãos de uma empresa estrangeira: tire seu telefone do gancho, pois do contrário não terá sossego diante da enxurrada de telefonemas para propor negócios, negociatas e serviços bancários através de um robô!

Grande parte da sociedade ainda não se deu conta da ameaça que representa para a privacidade e a intimidade das pessoas essa pretendida privatização. As bases de dados dessas empresas públicas contém a vida de praticamente todo cidadão brasileiro, seja dos que declaram imposto de renda, seja dos que estão aposentados e vivem de pensão.

Nas mãos de empresas privadas que visam especificamente ao lucro, em especial estrangeiras – e isso certamente aconteceria com a privatização -, esses dados se transformarão num instrumento de constrangimento diário para o cidadão e um inferno na vida do consumidor, perturbado por robôs de bancos e financeiras, vendedores e cobradores, e por grandes cadeias de vendas. Isso já acontece hoje, mas de forma limitada. É que as empresas que usam robôs tem bases de dados restritas. Com a privatização de Serpro e Dataprev o céu é o limite.

A proteção de dados que contêm praticamente toda a vida de uma pessoa ganhou dimensão mundial em tempos de informática. Na sua ausência, elimina-se o direito à privacidade e à intimidade do cidadão. Isso levou à aprovação, no Brasil, da Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor no próximo ano. É justamente nesse contexto que Paulo Guedes, que pôs o Brasil à venda no Texas, decidiu privatizar a Dataprev e o Serpro.

Perguntem se o cidadão ou consumidor norte-americano aceitaria a privatização dos sistemas que processam Imposto de Renda ou seu sistema de proteção social?

José Carlos de Assis é jornalista, economista e professor de Economia Política

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