Governo nega aumento de queimadas e culpa povos indígenas em discurso na ONU

 Bolsonaro discursa durante a abertura da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas . Foto: Alan Santos/PR

Fatos relevantes e medidas de governo

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o presidente Jair Bolsonaro negou que esteja acontecendo algo errado na Amazônia, apresentou uma visão ultraliberal, antiindígena e banalizou as queimadas ocorridas no país. Em meio ao seu discurso ideológico, que separa o Brasil das demais nações, Bolsonaro não mencionou as mensurações realizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) e culpou os povos indígenas por parte das queimadas ocorridas.

Na Amazônia brasileira houve uma elevação dos focos de incêndio a partir de agosto de 2019. De acordo com o Inpe foram 30,9 mil e 19,5 mil focos de incêndio na Amazônia em agosto e setembro de 2019, respectivamente. Com incêndios criminosos que iniciaram no denominado “dia do fogo”, em agosto, os focos de incêndio ocorridos no governo Bolsonaro tiveram uma elevação de 196% em relação aos registrados no mês de agosto do ano anterior. Apesar da quantidade em setembro de 2019 não ter apresentado a mesma tendência de elevação, chama-se a atenção para as queimadas ocorridas em agosto de 2019, por terem superado em 20% a média da série histórica de 1998-2019 – a média histórica para o mês de agosto foi de 26 mil focos, contra o patamar de quase 31 mil focos em 2019.

Diretamente relacionado aos incêndios, o desmatamento na Amazônia também cresceu em agosto de 2019, em relação ao mesmo mês de 2018. O substancial aumento de 222% revela que neste mês foram desmatados 1.701 quilômetros quadrados – área maior que o município de São Paulo. Os dados recém divulgados do Inpe apontam que 1.173 quilômetros quadrados de floresta estavam com sinais de desmatamento em setembro de 2019, sendo a quantidade de desmatamento 101,35% acima da média registrada entre setembro de 2015 a 2018.

Em meio a esse processo de degradação ambiental da Amazônia, o Brasil não foi incluído na lista dos países que discursaram no programa da Cúpula do Clima das Organizações das Nações Unidas (ONU), ocorrida em 23 de setembro de 2019, em Nova Iorque. A seleção das nações com espaço de fala na Cúpula do Clima foi realizada com base nas informações enviadas pelos países sobre compromissos climáticos para o futuro. Tiveram o direito de discursar os países com atitudes inovadoras sobre a conservação do meio ambiente a partir de programas e metas a serem perseguidas.

Em 20 de setembro de 2019, também ocorreu no Brasil e em outros 130 países, uma mobilização denominada “Greve Global pelo Clima”, com mais de mil cidades com manifestações organizadas em defesa do meio ambiente. Além da greve e manifestações do dia 20, ocorreu uma série de debates sobre o tema, como os da organização Coalizão pelo Clima. O evento mundial decorre da iniciativa da jovem sueca Greta Thunberg, postulante ao Prêmio Nobel da Paz e ganhadora de diversos prêmios por sua militância ambiental. A pauta principal foi a justiça ambiental para o ser humano, sendo o combustível fóssil identificado como um dos principais causadores do aquecimento global.

Ainda do ponto de vista internacional, ocorrerá em outubro de 2019, no Vaticano, o Sínodo Amazônico. O evento católico terá como objetivo encontrar novos caminhos de atuação da igreja na região, e também debaterá as violências direcionadas às comunidades indígenas, de ribeirinhos, e à Floresta Amazônica, que cresceram na gestão do governo Bolsonaro. Em consequência, o atual governo deve monitorá-lo de perto, como já declarou. Em contrapartida, ocorrerá uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em 1º de outubro 2019, para redação de um documento que dê respaldo às decisões a serem tomadas no Sínodo em relação à região e seus povos.

Enquanto isso, no Brasil, a bancada ruralista do Congresso Nacional vem trabalhando na articulação de um Projeto de Lei (PL) que visa permitir a venda de terras brasileiras para estrangeiros. Trata-se do PL 2.963/2019, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), que busca regulamentar a aquisição de terras por pessoas físicas e jurídicas de outras nacionalidades. Atualmente a venda de terras para estrangeiros é proibida. Em caso de aprovação, a medida pode gerar concentração de terras por empresas estrangeiras, bem como comprometer o bioma amazônico e a faixa de fronteira. A iniciativa pode valorizar o preço das terras brasileiras e expulsar o pequeno produtor e a agricultura familiar do processo produtivo.

ANÁLISE CRÍTICA

O presidente Bolsonaro, ao encontrar-se encurralado pela desestruturação da política ambiental brasileira e pelo aumento do desmatamento, declarou em seu discurso na ONU que as queimadas estariam sendo feitas pelos povos indígenas ou por ONGs para chamar atenção internacional, conforme declarado em outras oportunidades – como de costume o presidente não apresentou nenhuma prova ou evidência a respeito.

Segundo estudo do Inpe, as queimadas estão sendo usadas para limpar a terra de áreas recém-desmatadas, majoritariamente para que seja utilizada para atividades econômicas como cultivo agrícola ou pastagem para gado. As constatações do Ipam também indicam elevada associação entre municípios desmatadores e elevadas ocorrências de queimadas, entre eles Altamira, Porto Velho, Lábrea e São Félix do Xingu.

Segundo Bolsonaro, queimadas fazem parte da cultura indígena. Essa informação não só ignora a diversidade cultural e de modos de vida indígenas, mas também se contrapõe ao fato de que os índios são os grandes protetores da floresta. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostram que o desmatamento é dez vezes maior (19% contra 2%) fora das terras indígenas, e que os indígenas, na verdade, atuam como uma barreira antidesmatamento e pró estoque de carbono. Então, se há um desejo real do governo de preservar a Amazônia, se deveria também proteger, de fato, as terras indígenas, e até mesmo criar mais reservas, expandi-las.

Vele lembrar que Bolsonaro levou em sua comitiva e citou em seu discurso a youtuber indígena Ysani Kalapalo, sua apoiadora desde o período eleitoral e não reconhecida pela entidade indígena de seu próprio território original como representante da causa. Segundo a Associação Terra Indígena Xingu (Atix), Ysani Kalapalo não está autorizada a falar em nome das tribos da região e que, apesar de ela se dizer moradora do Xingu, reside na realidade em Embu das Artes (SP). A Associação e outras catorze lideranças locais ainda divulgaram um manifesto contra a representação de Ysani na comitiva presidencial na ONU. A “carta de repúdio” diz que o convite a Ysani “demonstra mais uma vez o desrespeito com os povos e lideranças indígenas renomados do Xingu”.

Ao invés de acusar os ambientalistas e índios pelos incêndios, Bolsonaro deveria repensar a desastrosa trajetória da política ambiental ocorrida em sua gestão. Ao abrir mão dos recursos provenientes da Alemanha e da Noruega para o Fundo Amazônia, Bolsonaro enfraqueceu todo o sistema de proteção das florestas brasileiras. Entre outros objetivos, o Fundo Amazônia financiava projetos governamentais para iniciativas de prevenção e combate a incêndios na Amazônia, bem como financiava ações do Inpe e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Dessa maneira, além dos grandes proprietários de terra da soja e do gado, a culpa pelo aumento das queimadas também pode ser creditada ao cruzar de braços do governo, que reduziu drasticamente o orçamento dos serviços prestados pelo Ibama e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Os retrocessos do governo incluem corte de recursos para estruturação do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) e corte de mais de cinco milhões de reais para fiscalização e combate aos incêndios realizados pela ICMBio. Os cortes orçamentários obrigaram o governo federal a reduzir em quase 25% o total de brigadistas temporários contratados para conter as queimadas.
Além de desestruturar a política ambiental, o governo estranhamente pretende alterar a forma de mensuração dos dados sobre o desmatamento. Caminhando nesse sentido, o Ministério do Meio Ambiente prevê a contratação de um sistema de monitoramento privado de uma empresa norte-americana, deixando para traz todo o acúmulo do Inpe. O sistema privado chamado Planet já se encontra em teste gratuito dentro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Na verdade, o governo erra ao pretender trocar um serviço público exitoso prestado pelo Inpe por um serviço privado sem comprovação de qualidade. A metodologia do Inpe se baseia em imagens captadas por satélite e os pesquisadores do órgão afirmam que a mensuração do desmatamento tem precisão superior a 90%. O sistema Deter do Inpe possibilita que a floresta seja monitorada 24 horas por dia. O Deter foi criado pelo governo Lula em 2004, possibilitando um diagnóstico de áreas desmatadas superiores a trinta mil metros quadrados.

Em suma, o início do governo Bolsonaro caracteriza-se pelo avanço do desmatamento na Amazônia e por um conjunto de retrocessos na condução da política ambiental brasileira. O avanço do ritmo do desmatamento no período recente veio acompanhado por conflitos sociais pelo uso da terra e resultou no aumento da violência no campo. O desmatamento vem causando boicotes comerciais de países importadores que defendem campanhas ambientais, bem como tem influenciado negociações de acordos comerciais entre o Mercosul e a União Europeia.

Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo

Este artigo integra o boletim de análise de setembro “De Olho no Governo”

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