Relatório sobre Cultura – Junho/2019

PENSANDO BEM, PRA QUE ESSA TAL CULTURA?

Neste primeiro dia de julho, quando estas linhas estão sendo escritas, o governo de Jair Bolsonaro completa exatos seis meses de existência. Embora muitos achem que esse período é insuficiente para que se faça uma avaliação adequada da gestão do capitão no campo da Cultura, outros entendem exatamente o oposto: em seis meses já haveria tempo de sobra para o governo ter mostrado ao que veio. Entre a tolerância talvez excessiva de uns e a exigência compreensível de outros, impõe-se a realidade dos fatos: nem o governo parece ter ainda o que dizer a respeito da Cultura, nem a sociedade pode esperar qualquer coisa dele sobre isso. Pois, como diz acertadamente a voz popular, “de onde menos se espera, é que não sai nada mesmo.”

Infelizmente, sai sim: brota o clima de intolerância,desrespeito, ignorância e polarização excessiva que está marcando o panorama cultural brasileiro, como há muito não se via no país. Quem quer que tenha atuado na área da cultura, pelo menos nos últimos 40 anos, certamente não lembrará de um ambiente tão hostil e tão infenso à busca dos consensos naturais, necessários à afirmação da excelência do saber e da criatividade nacionais, como o vivido nos dias de hoje. Mesmo nos tempos mais duros da ditadura militar, malgrado a censura e as perseguições políticas exercidas pelos setores policiais do regime, a burocracia de Estado não deixava de buscar(ou pelo menos de tentar buscar) alguma interlocução com os criadores e produtores culturais nacionais, independentemente da coloração ideológica destes. Não se pode esquecer que foi sob o governo do Gal. Ernesto Geisel que a FUNARTE realizou seus memoráveis concursos de dramaturgia, de onde saíram,reiteradamente premiados, autores como Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e outros, muitos deles assumidamente de esquerda, formados na escola do teatro nacional-popular dos anos 1960. Foi também a FUNARTE, que tinha entre seus dirigentes Amália Lucy Geisel (filha do general presidente), que juntou intelectuais progressistas, entre os quais o designer Aloizio Magalhães e o compositor Herminio Bello de Carvalho, para realizar projetos de indiscutível excelência cultural, deles podendo citar-se o célebre Projeto Pixinguinha, que ao longo de anos produziu espetáculos musicais referenciais com artistas de variadas gerações, os quais compunham a chamada “linha de frente” da MPB, quase todos opositores do regime de então. Mas a quem o palco nunca foi negado.

Coisas como essas não aconteceriam nos dias de hoje, quando a Cultura arrisca-se a ser dominada pela intolerância política somada ao despreparo intelectual, não apenas provindos de brucutus locais, mas também teleguiados e insuflados por pérolas made in Virginia.

Daí resulta que o debate cultural nacional tenha atingido, hoje, talvez o mais baixo patamar de sua história, o que pode vir a ter sérias consequências para o país. É o que se pode inferir das declarações de alguns candidatos a postos-chaves na administração cultural do atual governo,como veremos a seguir.

Começando por um lado anedótico, mas não menos ameaçador, temos a notícia de que um certo Edilásio Barra Jr., um “famoso quem”também conhecido como Tutuca, estaria ou está sendo cotado para assumir a Secretaria do Audiovisual no governo Jair Bolsonaro. Apresentado em entrevista à BBC News Brasil como pastor, produtor e jornalista, o preclaro Tutuca reinvidica enfaticamente que obras evangélicas tenham amplo acesso a verbas públicas e, ainda que diga defender um sistema sem viés ideológico, alardeia que “a esquerda tem que entender que a direita assumiu este país”, deixando claro que o controle da máquina estatal deve seguir critérios prioritariamente políticos, uma ofensa à democracia que nem os próceres mais empedernidos do regime de 1964 ousavam afirmar publicamente.  

Outra provocação do mesmo quilate ocorreu com a nomeação (esta já efetivada) do teatrólogo Roberto Alvim para a direção do Centro de Artes Cênicas da FUNARTE. Assumidamente de extrema-direita, Alvim reconhece que deve seu cargo mais à idolatria declarada que nutre pelo ideólogo Olavo Carvalho que propriamente às suas qualidades curriculares, que parecem mesmo existir. Lamentável, no entanto, é que o país tenha de contratar um profissional não em razão de suas prováveis aptidões técnicas para o cargo, mas,sim, devido a seu alinhamento político-ideológico a um “guru” distante, que sequer reside no país ou integra seu governo. Mais grave ainda é o recém contratado servidor ter confessado em seu Facebook (dia 18/5) que já está selecionando artistas conservadores para, no interior do aparelho de estado, iniciar uma máquina de guerra cultural, certamente para combater os criadores que não pensam como ele, embora pertençam à sua mesma categoria profissional. Em outro texto de sua página, o Plekhanov ultra direitista, talvez já ditando parâmetros para o organismo que irá dirigir, faz uma delimitação entre o que considera arte de esquerda e arte de direita: “Arte de esquerda é DOUTRINAÇÃO de todos os espectadores; arte de direita é EMANCIPAÇÃO POÉTICAde cada espectador”, afirma o teatrólogo, certamente já bastante emancipado.

Diante da intolerância ideológica e da luta de classes que Alvim inventa contra os seus iguais, a atriz Regina Duarte, mesmo sendo uma bolsonarista convicta, crava indignada: “Termino aqui com um pedido a todos os meus companheiros de classe: não vamos agora ceder à tentação de mais uma vez, raivosos, polarizar. O momento é de nos unirmos evitando armadilhas quenos dividam”.

Essa é a política cultural pública que se esboça para o país, se é que o atual governo chegará a formular uma. Bem a propósito, o jornalista e economista Joel Pinheiro da Fonseca lembra que, neste 2019 que ainda não terminou, mesmo já havendo tantos artistas e criadores culturais dignos de homenagens (como Antunes Filho, Bibi Ferreira, João Carlos Marinho,Beth Carvalho, Caio Junqueira e André Midani, todos falecidos, além do vivíssimo Chico Buarque, ganhador do Prêmio Camões), o governo do capitão espontaneamente rendeu honras a um certo Tales Volpi, funkeiro mais conhecido como MC Reaça, que cometeu suicídio no começo de junho, sendo reverenciado num twitter do Presidente como “um forte combatente na luta pela verdade.” O bolsonarismo cultural também se estendeu a outras áreas, chegando mesmo a demitir, há alguns dias, a direção da Editora do Senado, referência na atividade bibliográfica no Brasil.  

Por essas e outras razões, o já citado Chico Buarque,em recente entrevista concedida em Paris ao jornal  Le Monde, a respeito da atual Cultura brasileira foi cirúrgico ao afirmar que hoje os artistas brasileiros não são bem-vindos, nem bem vistos pelo governo, que despreza totalmente a cultura: “Uma cultura de ódio se espalhou de maneira impressionante”, diz ele.

Após mencionar problemas como a influência de Olavo de Carvalho sobre Jair Bolsonaro, ou um “ministro da Educação contra a educação” e “um ministro do Meio Ambiente contra o meio ambiente”,além de um chanceler “louco” (…) “que vai contra a história de excelência da diplomacia brasileira”, Chico conclui:

“Às vezes me digo que é melhor não ter ministro da Cultura neste governo. A cultura já é atacada de toda parte, se tivesse um ministro, a situação seria ainda pior”.  

A ser assim, pensando bem, não seria melhor extinguir de uma vez essa tal Cultura?

Simplificaria muito.

Marcus Vinicius de Andrade

Fundação Instituto Claudio Campos

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